Correio braziliense, n. 19903, 19/11/2017. Opinião, p. 13.

 

 

O legado do zika

Debora Diniz

19/11/2017

 

 

Há exatos dois anos, um grupo de médicos do Recife desenhou o primeiro protocolo médico para entender as causas do crescimento do número de recém-nascidos com microcefalia. Há um registro do momento: a fotografia mostra um grupo de mulheres ainda com roupas de hospital e uns poucos profissionais de jaleco e prancheta. Elas foram as primeiras mulheres cujos filhos haviam sido afetados pelo vírus zika. Nem elas nem a ciência sabiam o que estava acontecendo.

O nordeste foi assolado pelo zika no início de 2015, mas não existiam registros na literatura médica de que o vírus poderia causar alterações no desenvolvimento neurológico dos fetos. O grande número de recém-nascidos com cabeça miudinha, com alterações nos pés e nas mãos, alguns com deficiências auditivas ou visuais, era um sinal de que um agente infeccioso havia atingido as mulheres na gravidez. A pergunta era: qual?

Dois anos depois, parece claro imaginar que o causador era o vírus zika. A história se torna coerente e razoável, mas não foi assim que médicos de beira do leito viveram a surpresa. Os médicos que anunciaram a suspeita não eram cientistas, mas cuidadores de mulheres no pré-natal ou de crianças recém-nascidas. Sem os métodos rígidos da ciência, eles foram capazes de fazer as perguntas certas: ouviram as histórias das mulheres de adoecimento na gravidez, coletaram os exames na hora certa para testar a presença do vírus no líquido amniótico ou imediatamente após o parto.

O vírus zika era conhecido desde os anos 1950 na África, e o nome significa floresta coberta de folhas. Nos manuais de medicina tropical, zika era uma doença como dengue, chicungunha ou febre do Nilo. Com uma vantagem: era considerada de efeitos mais brandos no corpo. Não houve surtos significativos até a chegada do vírus no sudeste asiático nos anos 2000. Essa é a origem do vírus brasileiro e a melhor história que temos sobre a chegada do zika no Brasil é na Copa do Mundo de Futebol.

Não há mais situação sanitária de emergência para o zika no Brasil. Não estamos em um quadro de epidemia, pois os números caíram e os recém-nascidos afetados por zika com os sintomas já conhecidos são poucos. Mas, se a emergência não é sanitária, é ainda humanitária. São milhares de famílias pobres, negras ou indígenas, quase todas nordestinas ou da periferia do Rio de Janeiro com suas crianças com múltiplas necessidades de vida à espera da proteção do Estado.

As crianças afetadas por zika não apresentam apenas a microcefalia, mas um conjunto de sinais e sintomas amplo, como dificuldades de locomoção, visão ou audição. Algumas delas sobrevivem sob intensos cuidados, inclusive internações hospitalares periódicas. Outras, infelizmente, faleceram. As mulheres são as principais cuidadoras das crianças, o que acarreta um impacto imediato para o bem-estar de outras crianças, ou para a economia familiar.

O principal legado do zika é de justiça. O vírus ainda circula entre nós, e há previsões de possíveis novos surtos no futuro. Não é preciso falar do medo de novo acontecimento para entender a urgência de cuidar dessas famílias. É preciso olhar para o presente, pois já se foram dois anos da descoberta. Os recentes anúncios de cortes nos benefícios sociais, em particular o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família, terão consequências drásticas para essas famílias. O anunciado Programa Criança Feliz nunca alcançou essas famílias. Parece fácil esquecer essa gente, pois era povo já anônimo antes da chegada da epidemia.

Diante da inércia das políticas públicas, as famílias vêm buscando as cortes. Há casos à espera de julgamento no Supremo Tribunal Federal e em cortes locais. As famílias reclamam de acesso a medicamentos, de sofrer discriminação nos transportes públicos. As primeiras associações de famílias foram criadas em Recife, Maceió e Rio de Janeiro.

(...)

 

Debora Diniz

Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e conselheira do Instituto UniCEUB de Cidadania. Autora de “Zika: do sertão nordestino à ameaça global”. Ganhadora do Prêmio Jabuti 2017