O Estado de São Paulo, n. 45262, 19/09/2017. Política, p.A6

 

 

 

 

‘Povo cobra e não tolera a corrupção’

Raquel Dodge, procuradora-geral da República, diz que população ‘acompanha investigações’; abaixo, os principais trechos do discurso

 

“Recebo com humildade o precioso legado de serviço à pátria, forjado pelos procuradores-gerais da República que me antecederam, certa de que o Ministério Público deve promover justiça, defender a democracia, zelar pelo bem comum e pelo meio ambiente, assegurar voz a quem não a tem e garantir que ninguém esteja acima da lei e ninguém esteja abaixo da lei.

Cumprimento o procurador-geral Rodrigo Janot por seu serviço à Nação. Quarenta e um brasileiros assumiram este cargo. Alguns em ambiente de paz e muitos sob intensa tempestade. A nenhum faltou certeza de que o Brasil seguirá em frente porque o povo mantém a esperança em um País melhor, interessa-se pelo destino da Nação, acompanha investigações e julgamentos, não tolera a corrupção e não só espera, mas cobra resultados. (...)

Para muitos brasileiros a situação continua difícil, pois estão expostos à violência e à insegurança pública, recebem serviços públicos precários, pagam impostos elevados, encontram obstáculos no acesso à Justiça, sofrem os efeitos da corrupção, têm dificuldade de se auto-organizar, mas ainda almejam um futuro de prosperidade e paz social. (...)

Não é possível dizer que será fácil, mas confirmo que os problemas serão encarados com seriedade, com fundamento na Constituição e nas leis, porque cada membro do Ministério Público brasileiro está pronto e motivado para exercer todas as suas atribuições constitucionais. (...) Não nos têm faltado os meios orçamentários, nem os instrumentos jurídicos necessários para fazer cumprir a Constituição. (...)

Estou certa de que o Ministério Público continuará a receber do Poder Executivo e do Congresso Nacional o apoio indispensável ao aprimoramento das leis e das instituições republicanas e para o exercício de nossas atribuições. O Supremo Tribunal Federal tem distinguido o Ministério Público com sua atuação fundamentada, respeitosa e republicana, em tudo condizente com a harmonia que interessa aos cidadãos, ao entregar de modo célere a prestação jurisdicional que lhe é reclamada como guardião da Constituição. (...)

A Constituição nos incumbiu de zelar pela higidez do sistema eleitoral, de coibir a violência doméstica, os crimes no trânsito que ceifam tantas vidas, os homicídios e os crimes de corrupção. No Ministério Público, temos o dever de cobrar dos que gerenciam o gasto público que o façam de modo honesto, eficiente e probo, a ponto de restabelecer a confiança das pessoas nas instituições de governança.

O papa Francisco nos ensina que “a corrupção não é um ato, mas uma condição, um estado pessoal e social, no qual a pessoa se habitua a viver. O corrupto está tão fechado e satisfeito em alimentar a sua autossuficiência que não se deixa questionar por nada nem por ninguém. Construiu uma autoestima que se baseia em atitudes fraudulentas: passa a vida buscando os atalhos do oportunismo, ao preço de sua própria dignidade e da dignidade dos outros… A corrupção faz perder o pudor que protege a verdade, a bondade e a beleza”. (...)

O País passa por um momento de depuração. Os órgãos do sistema de administração de Justiça têm no respeito e harmonia entre as instituições a pedra angular que equilibra a relação necessária para se fazer Justiça em cada caso concreto. A Constituição não a estabelece apenas como ideal, mas exige concretude em relação a cada indivíduo, pautada pela observância da lei e dos direitos individuais.

O Ministério Público, como fiscal da Constituição e das leis, deve zelar pela dignidade de cada pessoa, pois a dignidade humana é essencial para assegurar um futuro de paz no País e entre as nações. O Ministério Público é guardião do legado civilizatório contido na Constituição. Princípios e normas que asseguram a liberdade do indivíduo também expandem a condição humana para a vida pacífica em sociedade, sustentam nosso estilo de vida, preservam nossas tradições e nossos costumes e constituem o devido processo legal. (...)

O Ministério Público postase ao lado dos cidadãos para cumprir o que lhe incumbe claramente a Constituição de modo a assegurar que todos são iguais e todos são livres, que o devido processo legal é um direito e que a harmonia entre os Poderes é um requisito para a estabilidade da Nação.

Os valores que defenderemos e que definirão nossas ações estão na Constituição: muito trabalho, honestidade, respeito à lei e às instituições, observância do devido processo legal e responsabilidade. (...) Neste início de mandato, peço a proteção de Deus para que nos momentos em que eu for colocada à prova, não hesite em proteger as liberdades, em cumprir o meu dever com responsabilidade, em fazer aplicar a Constituição e as leis, para entregar adiante com segurança o legado que recebo agora, e que eu então possa dizer, parafraseando a grande poetisa Cora Coralina, de meu amado Estado de Goiás, que contribuí para que haja “mais esperança nos nossos passos do que tristeza em nossos ombros.”

 

Corrupção

A nova procuradora-geral citou a palavra “corrupção” várias vezes no discurso de posse, mas não fez menção à Operação Lava Jato.

 

Sucessão

Janot deixou o comando do Ministério Público após quatro anos. O ex-procurador-geral da República não foi à posse da sucessora ontem.

 

Harmonia

Raquel citou a importância da “harmonia” entre instituições. Alvo de Janot, Temer também defendeu maior harmonia entre Poderes.

 

Papa

Trecho do livro O Nome de Deus É Misericórdia, do papa Francisco, foi citado pela procuradora-geral no discurso ao falar de corrupção.

 

 

 

 

 

 

Em carta, Janot critica ‘larápios’ em ‘vistosos cargos’

Por: Fausto Macedo / Julia Affonso

 

O ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot pediu a seus pares e aos servidores do Ministério Público Federal que coloquem o País “a serviço de todos os brasileiros, e não apenas da parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmente, ainda ocupam vistosos cargos em nossa República”.

Janot enviou uma carta a todos os procuradores e servidores do Ministério Público Federal. No documento de quatro páginas, ele afirmou ainda que “nunca” falhou “por omissão, por covardia ou por acomodação”. O ex-procurador-geral da República não foi à posse de sua sucessora, Raquel Dodge, ontem.

A carta de Janot não cita nomes. Destaca o trabalho realizado nos quatro anos de suas duas gestões. “Espero que a semente plantada germine, frutifique e que esse trabalho coletivo de combate à corrupção sirva como inspiração para a atual e futuras gerações de brasileiros honrados e honestos. O Brasil é nosso! Precisamos acreditar nessa ideia e trabalhar incessantemente para retomar os rumos deste país”, afirmou no documento.

Nos seus últimos dias no comando do Ministério Público, Janot apresentou denúncia contra o presidente Michel Temer por organização criminosa e obstrução da Justiça. Em nota, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência disse que a acusação é “recheada de absurdos”. / FAUSTO MACEDO e JULIA AFFONSO

 

 

 

 

 

 

Gilmar prevê revisão de delações; Barroso crê em ‘independência’

Discurso de posse de Raquel Dodge na PGR, que fala em ‘harmonia’, agradou a representantes dos Três Poderes
Por: Rafael Moraes Moura / Carla Araújo / Beatriz Bulla

 

BRASÍLIA

 

O discurso da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ontem, que pregou “a harmonia entre os Poderes”, agradou a representantes do Judiciário, Legislativo e Executivo.

Crítico de procedimentos do Ministério Público Federal na Operação Lava Jato e desafeto do antecessor de Raquel no cargo, Rodrigo Janot, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, elogiou ontem a fala da nova procuradorageral da República.

“Ouvi o discurso da procuradora Raquel Dodge e fiquei impressionado. Sua Excelência falou que vai dar continuidade ao trabalho de combate à corrupção, mas colocará outros temas também na agenda – a defesa dos direitos humanos, a questão da saúde, dos presos, a questão indígena. E enfatizou muito que as investigações devem ser feitas dentro dos devidos marcos legais. Acho que ela deu uma boa resposta”, disse Gilmar a jornalistas.

Questionado se Raquel deve rever acordos, o ministro do Supremo afirmou que “certamente haverá revisões”. Gilmar é um dos mais críticos à delação premiada de executivos do Grupo J&F, que tem sido questionada pela defesa do presidente Michel

Temer, alvo de segunda denúncia de Janot – pelos crimes de organização criminosa e obstrução da Justiça.

“Certamente a procuradorageral vai fazer uma reanálise de todos os procedimentos que estão ainda à sua disposição, de maneira natural, para certamente evitar erros e equívocos que estavam se acumulando”, disse o ministro do STF.

 

‘Favores’. Para o também ministro do STF Luís Roberto Barroso, Raquel vai seguir a tradição de “independência e seriedade” à frente do órgão. “Eu acho que a doutora Raquel tem uma história de vida e as pessoas, quando chegam nessas posições, elas vivem para a sua própria biografia. Elas não vivem para prestar favores. E acho que quem é alçado para um cargo desse, é claro que pode ter reconhecimento para autoridade que a nomeou, mas o compromisso é com o País e não com a autoridade.”

Raquel foi escolhida por Temer para o comando da Procuradoria-Geral, quebrando tradição iniciada em 2003 de se dar preferência ao primeiro colocado de uma lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Ela ficou em segundo lugar, com 587 votos, atrás do subprocurador Nicolao Dino, aliado de Janot, que encabeçou a lista com 621 votos. Dino pediu a cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer no julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) neste ano.

Questionado sobre a harmonia entre os Poderes, Barroso respondeu: “O STF opera em harmonia com os outros Poderes e julga fazendo o que é certo, justo e legítimo”.

Já o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, disse que acredita que a nova procuradora-geral “vai atuar dentro da serenidade e rigor com que ela sempre se pautou”. Meirelles, assim como fez Temer em seu discurso na cerimônia de posse, afirmou que o País vive um momento histórico também pelo fato de Raquel ser a primeira mulher a assumir o cargo. “Ela fez um discurso institucional muito importante, definindo regras básicas no estado de direito, do papel da PGR”, afirmou.

Para o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), Raquel será “dura, mas democrática”, e a sua posse “inicia um novo momento do País”. “Ela disse aquilo que todos nós esperávamos: que ninguém esteja acima da lei e que ninguém esteja abaixo da lei. Nem o presidente da República nem ninguém. Ela será dura, mas democrática.” / RAFAEL MORAES MOURA, CARLA ARAÚJO e BEATRIZ BULLA