Correio braziliense, n. 19908, 24/11/2017. Brasil, p. 06.

 

 

"Obras colocadas em outra narrativa"

24/11/2017

 

 

SOCIEDADE » Curador de mostra cancelada em Porto Alegre avalia que houve uma retirada da exposição do seu real contexto. Procurador da República sugere que museus e galerias estabeleçam classificações indicativas e submetam ao crivo do Ministério da Justiça

 

 

Em depoimento à CPI dos Maus Tratos do Senado, o curador da Queermuseu do Santander Cultural, Gaudêncio Fidélis, lamentou o cancelamento da mostra e disse que ela foi criada para abrir diálogo e debate sobre questões de gênero, racismo, sexismo e outros tipos de exploração humana. Ele foi convocado para a sessão de ontem da comissão parlamentar de inquérito que investiga irregularidades e crimes contra crianças e adolescentes no Brasil.

Durante a sessão, o curador da Queermuseu alertou sobre o perigo da retirada de uma obra de arte de seu contexto e explicou que não falaria para construir um “consenso”, mas “esclarecer e resgatar o real significado” das obras. “O que causou o choque foi o fato de que as obras foram retiradas de sua verdade e foram colocadas em outra narrativa. E isso é mais complexo do que um simples ‘fora de contexto’. Fico preocupado. Quando falo de retirada de contexto é o fato de que a obra é roubada de seu significado e um outro é atribuído a ela — nesse caso, a acusação de pedofilia e zoofilia”, explicou Fidélis. A Queermuseu seria realizada em Porto Alegre, mas gerou polêmica devido à temática pretensamente apologética à pedofilia, à zoofilia e à utilização de figuras cristãs em contexto sexual. O Santander cancelou a exposição, fato que gerou ainda mais críticas, por causa da liberdade de expressão e do fazer artístico.

A CPI também discutiu a questão da classificação etária indicativa para exibições ou apresentações ao vivo, abertas ao público. O procurador da República Fernando de Almeida Martins sugeriu que museus e galerias estabeleçam e submetam ao Ministério da Justiça as classificações indicativas para as exposições. A recomendação do procurador da República gerou polêmica.

Martins explicou que atualmente já existe uma portaria do Ministério da Justiça (Portaria nº 368/2014) que regulamenta o tema, mas exclui da classificação indicativa as exibições ou apresentações ao vivo, tais como as circenses, teatrais e shows musicais. Segundo o procurador, a portaria do Ministério da Justiça, por ser um ato infralegal, não poderia excluir determinados eventos da obrigatoriedade de classificação indicativa. Ele argumentou que museus e galerias não só deviam fazer a classificação indicativa, como também submetê-las à análise do Ministério da Justiça, que a ratificaria ou não. “Nosso objetivo é correção na legislação infralegal para que galerias e museus tenham um procedimento completo de classificação indicativa, como exigido pelo Estatuto e Constituição Federal. Não pedimos proibição de nada”, destacou.

 

Preocupação

A classificação indicativa é uma informação prestada às famílias sobre a faixa etária para a qual obras audiovisuais não se recomendam. Atualmente, são classificados produtos para televisão, mercado de cinema e vídeo, jogos eletrônicos, aplicativos e jogos de interpretação (RPG).

Os senadores Humberto Costa (PT-PE) e Marta Suplicy (PMDB-SP) manifestaram temor com a mudança. Para Humberto Costa, propostas no sentido de aperfeiçoar a classificação indicativa são bem-vindas, mas, segundo ele, o país não pode ceder ao desejo de censurar de determinados indivíduos. O senador afirmou que, na falta de uma “bandeira definida”, muitos “moralistas” e “reacionários sem causa” têm adotado posições autoritárias e tentado impor valores únicos no país. Para ele, o Senado deve se manter em alerta para não permitir que isso se torne senso comum.

Na opinião de senadora Marta Suplicy, o controle de idade em mostras de arte e exposições é um recuo para o país e para a arte brasileira. Marta explicou que é natural que a arte cause impactos mas ressaltou que ela não pode ser vista como pornográfica, já que trata da expressão livre do inconsciente do artista.