Correio braziliense, n. 19942, 29/12/2017. Política, p. 3

 

Ministra suspende decreto

Natália Lambert 

29/12/2017

 

 

Cármen Lúcia atende pedido da Procuradoria-Geral da República e desconsidera trechos alterados pelo presidente no perdão aos condenados. Na prática, o texto continua valendo sem a diminuição do tempo mínimo de cumprimento da pena e sem isenção de multas

Depois de um dia de polêmicas e críticas, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, atendeu o pedido da Procuradoria-Geral da República e suspendeu trechos do decreto 9.246 que mudavam critérios históricos para o indulto de Natal — quando o presidente perdoa crimes de condenados. Na prática, o texto continua valendo sem a diminuição de 1/4 para um 1/5 do tempo mínimo de cumprimento da pena e sem a isenção das multas aplicadas nos casos de corrupção e desvios do patrimônio público. O mérito da matéria ainda será discutido no Supremo em fevereiro, no fim do recesso do Judiciário, e, segundo especialistas em direito penal, a instabilidade causa insegurança jurídica. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, defendeu o ato do presidente como legítimo.

Na decisão, Cármen Lúcia concorda com os argumentos apresentados pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que entrou com uma ação no STF, na última quarta-feira, questionando a constitucionalidade do decreto. “Indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade (…) Indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime. Nem pode ser ato de benemerência ou complacência com o delito, mas perdão ao que, tendo-o praticado e por ele respondido em parte, pode voltar a reconciliar-se com a ordem jurídica posta”, destacou a ministra em trecho do documento.

Além das reclamações em relação à diminuição do tempo de cumprimento da pena para conseguir o benefício, a procuradora-geral criticou  Michel Temer por “interferência no Poder Judiciário” e afirmou que o perdão das multas de condenados por crimes contra o patrimônio público é inconstitucional. Em liberdade desde ontem, o ex-diretor do Banco do Brasil e condenado no mensalão, Henrique Pizzolato, baseado no decreto, já havia solicitado ao juiz que deixasse de pagar as parcelas dos R$ 2 milhões de indenização impostos (leia mais nesta página). “Será causa única e precípua de impunidade de crimes graves, como aqueles apurados no âmbito da Operação Lava-Jato e de outras operações contra a corrupção sistêmica e de investigações de grande porte ocorridas nestes últimos anos”, ressaltou Raquel.

Em encontro no Palácio do Jaburu, ontem pela manhã, Torquato e Temer conversaram sobre a possibilidade de alterar o decreto, mas saíram da reunião afirmando que não existia “essa chance”. Mais tarde, com a decisão de Cármen Lúcia, o ministro chegou a cogitar a edição de um novo texto para evitar inseguranças jurídicas, mas, no fim do dia, afirmou que ele permanecerá como está, com os artigos suspensos. Pelo menos por ora.

Competência

Na opinião do professor e especialista em direito penal Rafael Farias, o Supremo e a PGR usurparam uma competência exclusiva no presidente da República. “No caso do indulto, o presidente tem a discricionariedade de fazer o que bem pretender. O indulto vem com o sentimento de clemência, de absolvição, de retirada de erros e, nos últimos anos, tivemos presidentes com posições muito conservadoras em relação a isso”, comenta. “A PGR quebrou a harmonia entre os Poderes. Estamos vivendo de um jeito que é melhor fechar o Congresso, o Executivo e entregar a chave do país nas mãos do Judiciário”, acrescentou Farias.

Já o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti, afirma que a decisão da ministra foi correta porque, apesar de a Constituição determinar que é prerrogativa do Executivo decidir sobre o indulto, não existe poder discricionário. “O presidente extrapolou muito. A inconstitucionalidade é clara e patente. Não existe poder discricionário absoluto. Existia havia 30 anos, hoje não é mais assim. Ele tem liberdade dentro dos limites que a lei impõe. O decreto, praticamente, anulava o sentido da lei penal. Ele fugiu da razoabilidade e da proporcionalidade”, entende Robalinho.

Memória

Petistas beneficiados

Em 2015, o decreto de indulto de Natal assinado pela então presidente Dilma Rousseff também causou controvérsia. Parte dos políticos presos no mensalão no fim de 2013 poderiam ser beneficiados, como os petistas José Dirceu e Delúbio Soares e os ex-deputados Valdemar Costa Neto, João Paulo Cunha e Roberto Jefferson. A então presidente petista manteve o texto alterado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula em 2010, que aumentava o máximo de condenação para 12 anos. Em março do mesmo ano, o ex-deputado federal José Genoino já tinha tido a pena perdoada por causa do indulto de Natal. Em 2016, José Dirceu também obteve o benefício. Todos os crimes referentes ao mensalão.

A prerrogativa do presidente de decretar o indulto de Natal está prevista no artigo 84, da Constituição Federal, e não há regras estabelecidas no texto, somente a definição de que é competência privativa do chefe do Executivo “conceder indultos e comutar penas”. Desde 1999, os ex-presidentes da República seguiram um certo padrão nos indultos, previsto para crimes sem violência ou grave ameaça. Entre 1999 e 2002, Fernando Henrique Cardoso manteve um terço da fração mínima de cumprimento da pena e condenação máxima de seis anos (em 2000, baixou para quatro anos, voltando a aumentar nos demais períodos).

Lula, por sua vez, entre 2002 e 2010, a pena máxima de condenação para oito anos em 2007 e para 12 anos, em 2010. Dilma manteve a regra final de Lula. No final de 2016, o presidente Michel Temer, porém, estabeleceu que, para o indulto, bastavam um quarto da fração mínima de cumprimento da pena e condenação inferior a 12 anos. Este ano, baixou a fração mínima para um quinto da fração da pena e sem qualquer limite máximo da pena.