Valor econômico, v. 17, n. 4333, 04/09/2017. Opinião, p. A12.

 

 

Mais renda, mais crescimento?

Thiago Curado

04/09/2017

 

 

As expectativas de crescimento econômico vêm melhorando ao longo das últimas semanas. A tendência é que a economia volte a crescer ao longo do segundo semestre, embora em ritmo ainda modesto. A flexibilização da política monetária e a expansão da renda real são os elementos mais comumente destacados para justificar a expectativa de retomada da atividade. Por um lado, a redução da taxa de juros real contribui de forma inequívoca para o crescimento econômico. Por outro lado, o efeito da expansão da renda para o crescimento do segundo semestre não é tão claro, podendo inclusive, a princípio, ser negativo.

De fato, o cenário para a dinâmica da renda ao longo deste ano é favorável. Ao final do segundo trimestre, dados da Pnad-Contínua apontam expansão de 3% na renda real na comparação anual. Para o segundo semestre, a expectativa é que a renda média do período fique 2% acima do observado em igual período de 2016.

A associação entre as duas variáveis - renda e emprego - é imediata. De forma simples, à elevação dos rendimentos espera-se expansão do consumo das famílias e, por consequência, da atividade econômica como um todo. O ponto fundamental é que o atual processo de crescimento da renda não resulta de ganhos de produtividade, ampliação dos investimentos produtivos, elevação dos preços de ativos ou ganhos de termos de troca. Se estivéssemos em um desses casos, estaríamos tratando de um fenômeno de criação de renda e o benefício sobre crescimento seria inequívoco.

No entanto, o atual processo de ganhos de renda é resultante da surpresa desinflacionária deste ano. Assim, a elevação da renda constitui apenas uma transferência de riqueza entre os agentes domésticos. Mais especificamente, temos uma transferência de renda das empresas e do governo para os consumidores. Pelo canal do endividamento, temos uma transferência de devedores para poupadores. Nesse contexto, o efeito da renda sobre as perspectivas de crescimento econômico deixa de ser claro.

Em relação ao setor privado, o ganho de renda real dos trabalhadores tem como contrapartida uma elevação dos custos reais de produção das empresas. Esse efeito, ao aumentar o custo unitário de produção, pode ser traduzido como redução da produtividade e competitividade do setor produtivo. O aumento de custos limita ainda a capacidade de investimentos das empresas, elemento fundamental para um novo ciclo de crescimento sustentável.

As consequências de surpresas inflacionárias sobre as contas públicas são mais conhecidos no caso inverso, isto é, quando temos um processo não antecipado de inflação crescente. O processo é um velho conhecido dos brasileiros: na década de 80, a hiperinflação teve como resultado sucessivas reduções da renda real das famílias. Tínhamos, ali, uma transferência de riqueza dos detentores de moeda para o governo - o chamado imposto inflacionário. O que temos agora é o irmão gêmeo, menos conhecido, desse processo. A desinflação, ao não ser antecipada no processo de determinação de salários, se traduz em aumento de gastos reais do setor público com folha de pagamento.

Aumento da renda causado pela desinflação é apenas transferência de riqueza entre os agentes domésticos

A transferência de renda também ocorre via endividamento, uma vez que os juros reais ex-post dos títulos de dívida ficaram, no período, significativamente acima do contratado. Assim, houve transferência de recursos de devedores para credores. Para o setor público, o efeito é claramente negativo. Para o setor privado, e em particular para o caixa das empresas, o efeito não é claro. De toda forma, o efeito final sobre a capacidade de investimento da economia parece ser negativo.

Assim, deixa de ser claro qual a influência da evolução da renda na recuperação econômica do segundo semestre. O efeito final será determinado pela resposta de consumidores, empresas e financiadores externos à redistribuição de renda aqui descrita. É possível que tenhamos expansão expressiva do consumo das famílias, mais do que proporcional à redução dos investimentos privados. A hipótese tem apelo tendo em vista a recente melhora do grau de endividamento das famílias, bem como a possível existência de uma demanda reprimida em função da crise prolongada. Já o efeito via deterioração das finanças públicas depende da resposta do governo em termos de política fiscal, bem como da reavaliação de riscos dos investidores.

Mesmo considerando que o efeito líquido da expansão da renda sobre a atividade econômica seja positivo, este será atenuado pela redução da produtividade das empresas e pela pressão adicional sobre os cofres públicos. Posto de outra forma, não podemos esquecer que estamos tratando de um processo que, em sua essência, constitui uma realocação, e não criação, de riqueza. Ao não levar tais elementos em conta, é possível que as atuais projeções de mercado para o segundo semestre estejam exagerando o grau de recuperação da atividade.

Um novo ciclo de crescimento precisará ser sustentado por recuperação substantiva dos investimentos privados. Sem uma nova valorização substantiva de termos de troca, apenas o consumo não será capaz de sustentar maior expansão econômica. Além disso, a resolução dos desequilíbrios fiscais do Brasil é essencial para tal recuperação, permitindo a manutenção de taxas de inflação e de juros em patamares civilizados. O atual processo de elevação da renda real, no entanto, por ser consequência exclusiva de uma surpresa desinflacionária, vai em sentido oposto.

Ao ser resultado de uma transferência de riqueza, a expansão do consumo ocorre concomitante à redução da capacidade de investimento privado e deterioração de nossa situação fiscal. De fato, dadas essas características do processo, é pouco provável que a elevação do consumo, antecipada para o segundo semestre, seja o ponto de partida de uma recuperação mais ampla da economia.

Thiago Curado é sócio da 4E Consultoria, e doutorando em economia pela EESP-FGV (curado@4econsultoria.com.br).