Valor econômico, v. 17, n. 4352, 02/10/2017. Legislação & Tributos, p. E2.

 

 

Judicialização e o direito à saúde

Ana Paula Souza Cury

02/10/2017

 

 

A tese defendida por muitas figuras importantes do direito nacional sobre judicialização excessiva na questão da saúde não resiste à análise dos fatos. Quem aborda a questão por este prisma esquece que a dignidade da pessoa humana é fundamento do próprio Estado Democrático brasileiro. E desconsidera que a defesa do consumidor através do Estado e o direito de petição aos poderes públicos em defesa de seus direitos são direitos fundamentais previstos em nossa Constituição Federal.

O artigo 5º, XXXV, da Carta Magna, dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Em suma, preconiza o direito de ação e acesso ao Poder Judiciário assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Sendo o direito de ação e o direito à saúde direitos fundamentais dispostos na Constituição Federal.

O despertar para a consciência de que todo indivíduo é portador dos mesmos direitos, e de que este pode socorrer-se do Estado por meio do Poder Judiciário, não é um fenômeno negativo, mas um despertar da cidadania para a efetivação de direitos constitucionais que, por muitos anos - e ainda hoje -, foram garantidos sem esforços a apenas parte da população.

O caos na saúde é resultado da falta de investimentos por parte daqueles que tem o poder e o dever para tanto

Não é novidade que investimentos e melhorias nos serviços públicos levariam a maior equilíbrio social e, consequentemente, a uma menor demanda do Poder Judiciário. Contudo é por demais tendencioso o raciocínio de que os cidadãos que recorrem à Justiça não cobram a melhoria do serviço público em si, mas sim tratamentos individualizados; e, por causa disso, o resultado é o caos que vemos.

Tal raciocínio é tendencioso porque são inúmeras as manifestações populares reivindicando a melhoria dos serviços de saúde pública e, em segundo lugar, pois não se pode conceber que se vá exigir que o doente, ao invés de buscar sua cura, vá então fazer protestos e aguardar pacientemente pelo investimento estatal.

O caos é resultado da falta de investimentos por parte daqueles que tem o poder e o dever para tanto, utilizando-se da verba arrecadada do povo - a União, os Estados, e os municípios. Portanto, não se trata de investimentos que dependem de clamor popular para sua realização, mas sim de obrigações básicas que, como inúmeros outros pontos no país, são negligenciados.

A sociedade, os profissionais da advocacia e da Justiça deveriam se espantar quando integrantes do Judiciário externam, publicamente, opiniões contra direitos sociais. Até porque a Lei Orgânica da Magistratura veda que juízes se manifestem por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério. Juízes falam nos autos. Quando isso não acontece, afasta-se a imparcialidade devida pelos integrantes da Justiça. Isso sim é o caos.

Quando juízes, de qualquer instância ou lugar, aceitam reproduzir o discurso que já se vê a longo tempo vindo de planos de saúde e dos maus gestores públicos, cabe à sociedade questionar-se de que lado está o Poder Judiciário: o daqueles que buscam efetivar o direito basilar de uma vida com assistência à saúde, ou o daqueles que perpetuam a ineficiência e a má-gestão da coisa pública impunemente? O do cidadão hipossuficiente ou o dos enormes grupos empresariais que lucram com a saúde suplementar?

Com um ponto há que se concordar: a saúde brasileira precisa passar por um diagnóstico da situação atual. Acontece que esse processo deve ser feito não pelos pacientes e cidadãos individualmente, mas deve, sim, contar com uma investigação por aquele que é (ou deveria ser) o defensor da "ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis", o Ministério Público.

O que se vê é que, enquanto há uma verdadeira campanha de quase demonização daqueles que vão buscar o Poder Judiciário para a garantia de seus direitos, há uma total inércia do órgão ministerial como necessário defensor e fiscal da lei nas questões relativas à saúde, que através de sua omissão atua de forma conivente com a má administração das verbas públicas, com a exploração praticada por empresas privadas, e com o verdadeiro caos em que se encontra o país (também) nesse ponto.

Se é certo que reformas estruturais são necessárias e que a melhoria da gestão dos fundos públicos é devida, o argumento pela redução da proteção a direito tão basilar com base em critérios que buscam culpabilizar o doente pela busca de uma solução é crepúsculo do próprio conceito de direitos fundamentais.

O que se pode concluir, enfim, é que proporcionar um tratamento, melhorar a qualidade de vida de paciente terminal, ou mesmo dar condições de vida renovada a um paciente, não podem ser questões reduzidas a meras métricas de concessão judicial, sob pena de se desvirtuar a própria essência do significado de se viver em um país que se considera um Estado Democrático de Direito.

Ana Paula Souza Cury sócia-fundadora do Souza Cury Advocacia e especializada em direito da saúde

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