Valor econômico, v. 17, n. 4350, 28/09/2017. Internacional, p. A10.

 

 

Brasil demora para adotar acordos deixados por Obama

Juliano Basile

28/09/2017

 

 

Barack Obama deixou um legado de acordos com o Brasil que foram levados adiante pelos EUA, mas que ainda padecem de cumprimento por órgãos do governo brasileiro. A lista atinge vários setores da economia bem como executivos brasileiros que têm negócios com os EUA. Se os acordos firmados com o governo Obama tivessem sido concluídos, o Brasil poderia estar atraindo mais investimentos americanos.

Obama virá ao Brasil para participar do evento "Cidadão Global", em 5 de outubro, em São Paulo, promovido pelo Valor e pelo banco Santander.

A relação do então presidente americano com o Brasil começou com admiração. Logo após assumir a Presidência, em janeiro de 2009, Obama viu o Brasil como o país que estava conseguindo crescer economicamente, a despeito da crise financeira que começou nos EUA e afetou praticamente o mundo inteiro.

Ele chegou a apontar que o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva era "o cara" e o "líder mais popular da Terra", durante um encontro do G-20 (grupo que reúne as maiores economias do mundo), em abril de 2009, em Londres.

Mesmo com essas boas impressões recíprocas entre Obama e Lula, a relação bilateral passou por algumas crises que dificultaram avanços em questões importantes entre os dois países. Uma dessas crises mais relevantes ocorreu quando o Brasil intermediou um tentativa de acordo sobre enriquecimento de urânio com o Irã, na mesma época em que os EUA defendiam a imposição de sanções àquele país, em maio de 2010. Outra crise grave derivou da revelação de documentos diplomáticos americanos indicando que o Brasil estaria sendo espionado, inclusive a então presidente Dilma Rousseff.

Segundo diplomatas americanos ouvidos pelo Valor, o acordo com o Irã foi o ponto de maior dificuldade na relação bilateral durante o governo Obama. Já os diplomatas brasileiros apontam o episódio da espionagem como o mais dramático, responsável pelo cancelamento da visita de Estado que Dilma faria a Washington, em 2013.

Obama também enfrentou contradições na sua relação com o Brasil. O americano tinha pontos em sua agenda internacional que se assemelhavam ao governo de Lula e de Dilma, como a defesa do meio ambiente e o uso de energias renováveis. Porém, o Brasil raramente estava ao lado dos EUA nas votações importantes na ONU. Obama cobrou esse fato numa reunião bilateral, durante um encontro na ONU, ainda na gestão Dilma. Um embaixador brasileiro respondeu que o Brasil votava junto com os EUA no mesmo nível da Índia. "That's low bar" (algo como "Isso é nivelar por baixo"), retrucou Obama.

A agenda bilateral ganhou bastante impulso com a visita de Obama a Brasília, em março de 2011, quando foram assinados vários acordos. Como a então presidente Dilma estava nos primeiros meses de sua gestão e Obama poderia ser reeleito - como, de fato, acabou acontecendo - os acertos apontavam para uma agenda de cooperação de prazo mais longo entre os dois governos. Porém, não apenas vários pontos não foram cumpridos pelos brasileiros como a relação foi tomada por crises pontuais que atrapalharam os avanços pretendidos pelas duas partes.

Um dos principais pontos daquela visita, em termos comerciais, foi a parceria para a abertura de voos por companhias internacionais entre os dois países. Chamado de céus abertos ("open skies"), o acordo foi cumprido imediatamente pelo lado americano, enquanto que, no Brasil, Dilma deixou o seu mandato, em 2016, sem ter enviado o texto para o Congresso. Atualmente, o acordo entra toda a quinta-feira no sistema de votação do plenário da Câmara para ser, posteriormente, ser retirado por obstrução liderada pelo PT.

Houve ainda entendimentos mútuos que foram acertados visando desenvolvimento em determinados setores da economia que não apenas não foram para frente como retrocederam.

O governo Obama se comprometeu a abrir o mercado americano à carne bovina brasileira, o que de fato aconteceu. As primeiras exportações do produto "in natura" chegaram aos portos daquele país no fim de 2016, ainda em seu mandato. Porém, as operações da Polícia Federal sobre problemas na fiscalização de carnes no Brasil e a descoberta recente de abcessos em algumas amostras levaram os EUA a embargar o produto neste ano. O Brasil passou, portanto, da promessa de uma abertura de mercado, que foi cumprida por Obama, a uma situação de embargo por razões sanitárias.

No setor de combustíveis renováveis, o governo Obama retirou uma tarifa de importação do etanol, atendendo a uma demanda de anos de produtores e do governo brasileiro. Mas, em agosto passado, o Brasil baixou uma tarifa sobre o etanol dos EUA que está sendo profundamente criticada por produtores, parlamentares e por membros do governo americano. Neste ponto, o Brasil passou de defensor de livre comércio com os EUA à condição de protecionista.

Na área tributária, após anos de tratativas, Brasil e EUA chegaram a um termo que permite a troca de informações entre os órgãos da Receita Federal dos dois países. Porém, o acordo para evitar a bitributação, que seria um importante avanço bilateral, beneficiando contribuintes que têm atividades nos dois países, permanece em discussão há décadas e ainda está longe de ser concluído.

Em junho de 2015, durante a visita reagendada de Dilma a Washington, o governo brasileiro se comprometeu a concretizar, até o primeiro semestre de 2016, a participação do Brasil no "Global Entry" - programa que facilita a entrada nos EUA de executivos e pessoas consideradas de baixo risco. Até hoje, porém, o governo não conseguiu tomar as medidas necessárias para implementar o programa no lado brasileiro.

O Brasil também se propôs a aprovar um acordo bilateral de Previdência, que resultaria numa economia de US$ 900 milhões a empresas brasileira e americanas, mas o texto ainda não foi ratificado pelo Congresso.

Uma derrota importante para os EUA foi a opção do Brasil pela compra de caças suecos, em detrimento dos da Boeing - um negócio estimado em US$ 5 bilhões. A escolha brasileira foi anunciada dois meses depois do cancelamento da visita de Dilma por causa do "escândalo da espionagem".

O último ano de Obama na Presidência coincidiu com o processo de impeachment de Dilma, o que acabou afastando os EUA do Brasil. O americano não queria provocar interferência na tumultuada crise política brasileira. Esse também foi o ano em que Obama promoveu uma abertura sem precedentes com Cuba e visitou a Argentina num claro sinal de apoio às reformas anunciadas pelo presidente Mauricio Macri. Os EUA passaram a se concentrar em outros países da região. Com o presidente Michel Temer, houve apenas um aperto de mãos durante a assembleia da ONU, em 2016.

Mark Feierstein, consultor sênior da Albright Stonebridge Group e ex-integrante da equipe de Obama na Casa Branca responsável por lidar com o Brasil, lembrou que houve um esforço muito grande por parte do então presidente americano para se aproximar do Brasil em várias frentes. Mesmo com as crises pontuais que ocorreram entre os países, Obama tentou avançar tanto no comércio quanto em posicionamentos nos fóruns globais, como, por exemplo, na questão climática.

Feierstein acredita que Obama deixou a Presidência legando uma imagem melhor dos EUA perante o Brasil. Agora, segundo ele, há uma oportunidade clara para os dois países avançarem no campo dos negócios por conta do interesse mútuo das empresas. "O novo governo tem muito interesse em promover o comércio", afirmou ele, referindo-se ao presidente Temer.

Para João Augusto Castro Neves, diretor para a América Latina da consultoria de risco político Eurasia Group, boa parte da agenda com o Brasil durante o governo Obama foi conduzida pelo setor privado. Ao todo, 50 CEOs de grandes empresas americanas acompanharam Obama durante a sua visita ao Brasil, em 2011, da qual participaram também 400 presidentes de companhias brasileiras. "O que funciona como força motriz da relação bilateral é o setor privado", ressaltou. "Mas falta uma definição clara do que os EUA querem do Brasil e do que o Brasil quer com os EUA", apontou Neves.

Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, uma organização não-governamental destinada a aproximar governos do continente americano, lembrou que o Brasil e os EUA sempre ressaltaram intenções de aumentar os laços comerciais, porém, os governos dos países não assinaram um pacto neste sentido nas últimas três décadas. Neste período, os EUA fecharam 20 acordos de livre-comércio, 11 deles com outros países latino-americanos. Com o Brasil, a discussão está atualmente em torno da adoção de medidas para facilitação comercial. "A relação, de fato, sempre foi mais focada pelas empresas, pelos interesses das empresas", concluiu Hakim.