Valor econômico, v. 17, n. 4351, 29/09/2017. Especial, p. A12.

 

 

Senado votará "pacote" de liberação de porte de armas

Ligia Guimarães

29/09/2017

 

 

Depois de decidir que os agentes de trânsito de todo o país poderão trabalhar armados mediante a sanção do presidente Michel Temer, o Senado se prepara agora para votar outros dois projetos que alteram o Estatuto do Desarmamento, lei regulamentada em 2004, e liberam o porte de armas a moradores de áreas rurais, auditores fiscais, técnicos da Receita Federal, defensores públicos, oficiais de Justiça e até peritos médicos da Previdência Social.

As propostas são alvos de críticas de especialistas em segurança pública ouvidos pelo Valor, que alegam que, se o número de homicídios no Brasil continua altíssimo - foram 59.080 em 2015, segundo o Atlas da Violência - as mortes violentas estariam crescendo em um ritmo muito maior não fosse o Estatuto do Desarmamento. Dados do especialista em economia do crime e segurança pública Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apontam que entre 1995 e 2003, antes do estatuto, a taxa de homicídio no Brasil cresceu 21,4%. No período de 2003 a 2012, depois que a lei foi criada, a taxa aumentou só 0,3%.

O sociólogo Julio Jacobo, no Mapa da Violência de 2015, concluiu que 160 mil vidas foram poupadas pelo maior controle de armas exigido pelo Estatuto do Desarmamento. Na série histórica de morte por armas de fogo do estudo, de 1980 a 2012, o ano de 2004, da regulamentação da lei, registra a primeira queda no número de homicídios por disparos depois de dez anos seguidos de crescimento.

"Há um consenso na academia internacional: mais armas causam mais crimes", destaca o estudo de Cerqueira, doutor em economia pela PUC-Rio e ex-analista do Banco Central. Calcula ainda que, no Brasil, 1% a mais de armas causa alta de até 2% na taxa de homicídios.

Os números, no entanto, não convencem o senador José Antônio Medeiros (PSD-MT), relator do projeto de lei (PLC 152/2015), aprovado na quarta-feira, que permite o porte de arma de fogo em serviço por agentes da autoridade de trânsito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios que não sejam policiais. Guardas municipais nessa função terão o mesmo direito. O projeto vai agora para sanção de Temer.

"Eu nem me preocupo em buscar números [para rebater as pesquisas], porque não tem número que vá me dar a sensação de segurança se eu estou sozinho em um bairro perigoso sem uma arma ou polícia por perto", afirma Medeiros, confrontado com os dados de Cerqueira e Jacobo. Policial rodoviário, ele mesmo diz que já precisou atirar para espantar bandidos que tentaram invadir sua casa. "Se o Estado conseguir garantir a segurança do cidadão, que os desarme". "Há números sobre os EUA, que contradizem isso", diz.

Mas a ciência americana, ao contrário do que afirma o senador Medeiros, reforça as conclusões da academia brasileira. Estudo de 2013 publicado na prestigiada "American Journal of Public Health", por exemplo, do pesquisador Michael Siegel, da Universidade de Boston, afirma que a cada 1% de alta na proporção de residências que possuem armas, o homicídio doméstico cresce 0,9%. Recentemente, a revista "Scientific American" compilou 30 estudos acadêmicos dos Estados Unidos que apontavam que mais armas não evitam mais crimes, mas o oposto; o aumento da circulação de armas de fogo tende a elevar crimes como assassinatos, estupros, e outros.

"Liberar o porte de armas para agentes de trânsito piora a segurança pública e não melhora a segurança dos próprios profissionais, já que aumenta o número de armas em circulação", afirma Ivan Marques, diretor-executivo do Instituto Sou da Paz. "As CETs vão investir em arsenais? Terão a dupla função de agentes de fiscalização de trânsito e de segurança? Essas questões mostram a fragilidade da proposta", critica Marques.

Tramitam também no Senado o projeto de lei nº 30/2007, já aprovado na Câmara, que permite o porte de armas a algumas categorias de agentes públicos; e o projeto de lei 224/2017, do senador Wilder Morais (PP/GO) e tem como relator o senador Sérgio Petecão (PSD-AC), que libera que residentes em áreas rurais maiores de 21 anos comprem armas se preencherem determinados requisitos de treinamento.

A liberação de armas é vista com preocupação pelo senador Cristovam Buarque (PPS-DF). "É um movimento na direção errada", diz ele, que afirma não ver razão para que agentes de trânsito andem armados. "Se você diz que é porque pode ter um passageiro armado, então todo taxista tem que estar armado também. E vamos ter que armar os médicos dos hospitais públicos, porque quando chega alguém que não é atendido na hora, pode estar armado também", diz Buarque, que defende que se cobre o papel do Estado na segurança.

Para o Instituto Sou da Paz, a maior circulação facilitará o desvio de armas para o mercado ilegal. Pesquisa realizada pelo instituto entre 2011 e 2012 e que analisou 4.289 armas que foram utilizadas em crimes de roubo ou homicídio na cidade de São Paulo revelaram que 87% das armas utilizadas nos assassinatos eram de origem legal, bem como 82% das s utilizadas em roubos. 78% delas eram fabricadas no Brasil, o que enfraquece a tese de que a maior parte venha pela fronteira com outros países. "Com a aprovação da lei, com certeza jogamos mais uma leva de armas na ruas que fatalmente serão desviadas para os criminosos", afirma Felippe Angeli, assessor do Instituto Sou da Paz. Para Angeli, que acompanha de perto a tramitação do tema em Brasília, grande parte das votações sobre é influenciada pelos interesses da indústria bélica brasileira, que atua, inclusive, no financiamento de parlamentares. "Quando é formada uma comissão especial para tratar da flexibilização do estatuto, vemos claramente a sobre-representação de deputados financiados pela indústria de armas integrando a comissão", diz.

A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV), que no projeto Câmara Transparente busca desvelar as influências econômicas feitas sobre os deputados, estima que, em 2014, as companhias do setor de segurança e material bélico doaram R$ 660 mil a candidatos do Amazonas; R$ 616 mil em Minas Gerais e R$ 244 mil no Rio Grande do Sul, por exemplo.

Medeiros diz que sempre será favorável a projetos que liberem armas, mas rejeita o rótulo de integrante da chamada "bancada da bala". "Se tem alguém sendo financiado pela indústria bélica, eu não sei. Eu não vejo lobby muito grande nem conheço pessoas ligadas a essas empresas", afirma o senador.