Valor econômico, v. 17, n. 4356, 06/10/2017. Legislação & Tributos, p. E2.

 

 

Uma nova ética empresarial global?

Roberto Di Cillo

06/10/2017

 

 

A prisão preventiva dos irmãos Batista por um suposto insider trading realça uma questão da diferenciação entre pessoas físicas e jurídicas, sempre presente quando se negocia TACs e, mais recentemente, acordos de leniência em casos de corrupção. A questão em comento gira em torno da ética difundida na empresa e pela empresa.

A rigor, a ética da empresa deveria se distinguir da ética de seus criadores. Criatura, embora não tenha vontade própria, tem personalidade jurídica distinta, salvo situações que justifiquem sua desconsideração, como abuso e isto já não é conceitualmente novo no ordenamento brasileiro.

O movimento de transformação da ética empresarial, no Brasil, parece ter começado com mais vigor em 2013, antes até da edição das Leis 12.846/13 e 12.850/13 e já com as manifestações populares que precederam a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. O apoio popular a medidas de alteração do cumprimento (ou "enforcement") de leis existentes se iniciou, portanto, antes de alteração de leis, como seria até natural, em que pesem todas as imperfeições possíveis do processo legislativo em qualquer lugar do mundo, o Brasil mais nítido para nós.

Os órgãos de Estado e até de governo envolvidos no combate à corrupção precisariam de um reforço positivo de suas atitudes

A questão da alteração do cumprimento de leis é muito importante para entender como se está moldando uma possível nova ética empresarial, aproximando-nos, de alguma forma, de sistemas da "common law", principalmente de onde surgiram, nos Estados Unidos, as primeiras iniciativas para criminalizar e, portanto, coibir, práticas corruptas com o mau uso de empresas, após Watergate e na década de 70.

Naturalmente os órgãos de Estado e até de governo envolvidos no combate à corrupção, inclusive aqui no Brasil, precisariam de um reforço positivo de suas atitudes. E muitas vezes não dá para ficar esperando a mudança de lei per se, ainda mais se pairarem dúvidas sobre a independência do Congresso com relação às pessoas físicas e jurídicas investigadas e, mais ainda, eventualmente condenadas.

E, às vezes, é de interesse público que os agentes de Estado ajam de acordo com a razão, com respaldo da opinião pública sim, com todas as imperfeições que pesquisas possam apresentar (e mesmo abaixo-assinados), num verdadeiro movimento de alteração do cumprimento das leis e numa constante evolução do "status quo".

Afinal, a estrita legalidade existe para proteger o cidadão, mas mais ainda os cidadãos, coletivamente considerados.

Não se deve entrar no mérito de casos específicos, inclusive no caso citado acima, eis que, sobretudo, a fase em que se encontra é bastante preliminar.

Ainda assim, entender o contexto em que os pedidos de prisão preventiva dos irmãos Batista (e demais pedidos) foram formulados por um suposto insider trading a partir do também suposto uso de informações relativas às suas colaborações premiadas ajuda na tarefa de também compreender qual o nível de tolerância e de quem existe hoje no Brasil e com relação ao uso da empresa para atividades potencialmente abusivas.

Os interesses em jogo e, logo, que delineiam o nível de tolerância com o uso de empresas para fins alheios aos interesses envolvidos em qualquer empresa, são muito maiores do que os interesses de seus criadores ou novos sócios, quando a empresa se torna propriedade de outros sócios e é gerida por outros que sucedam seus criadores e/ou gestores originais.

Em alguns casos, como no caso dos irmãos Batista, há sócios minoritários, inclusive o BNDES, eventualmente fundos de pensão, além de vários (outros) stakeholders, que têm interesses legítimos na boa condução, com uma ética aceitável, dos negócios da empresa, às vezes por dela dependerem economicamente, caso de empregados e contratados, às vezes por dela serem credores, como no caso de credores propriamente ditos, às vezes o próprio Estado, para não falar em clientes e/ou consumidores, a depender de cada setor. E ética aceitável, com certeza, já não significa mesmo no Brasil lucros a qualquer custo, e essa ética está em constante evolução, por influências domésticas e internacionais, facilitadas tanto pelo hoje amplo acesso a informações a sites, blogs e redes sociais.

Para adicionar maior complexidade, pode ser que os sócios e stakeholders de uma empresa específica estejam em outros países, o que exigirá uma conciliação que vai além da mera tradução literal de conceitos, expectativas, valores e missões, comumente perdidos em traduções literais na formatação e implementação de normas e procedimentos específicos e eficazes.

A nova ética empresarial global em formatação é, pois, global porque envolve interesses globais, de sócios e stakeholders no Brasil, que podem ter agendas e ideologias próprias e significativamente diferentes, até inconciliáveis, em parte. É global também porque pode, potencialmente, envolver mais de um país em sua formatação.

O denominador comum em todos os casos está além de agendas e ideologias e práticas pessoais, isoladamente. E esse denominador comum, repetido comumente pela imprensa, é a intolerância zero ao abuso de empresas, quer para corrupção, quer para outros crimes, inclusive insider trading. Isto não quer dizer, obviamente, que qualquer acusado deva ser privado de seus direitos ao contraditório e ampla defesa, mas já está mais do que na hora de se separar criadores de criaturas, que têm agendas e interesses significativamente distintos.

Roberto Di Cillo é advogado graduado pela USP, LLM pela University of Notre Dame, especializado em governança corporativa e ética

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