Valor econômico, v. 17, n. 4356, 06/10/2017. Especial, p. A20.

 

 

'Sem recall, o único caminho possível é o da inidoneidade'

Murillo Camarotto

06/10/2017

 

 

O destino de três das maiores empreiteiras do país pode ser selado em breve pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Acusadas em março de participarem de uma fraude na licitação da montagem da usina nuclear de Angra 3, Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa escaparam por pouco de serem declaradas inidôneas pelo órgão.

Na ocasião, as três foram beneficiadas por uma espécie de salvo-conduto concedido pelo procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba. Ele procurou o TCU com um pedido para que as três empresas, que assinaram acordo de leniência com o Ministério Público Federal (MPF), tivessem a declaração de inidoneidade suspensa. O tribunal deu 90 dias.

Nesse período, Deltan iria buscar uma alternativa para que Odebrecht, Camargo e Andrade devolvessem ao erário todo o dinheiro que desviaram de Angra 3. O ressarcimento seria viabilizado por meio de uma atualização dos acordos já assinados, processo conhecido por "recall".

Diferentemente dessas três empreiteiras, as demais integrantes do consórcio responsável pela fraude em Angra 3 foram declaradas inidôneas. UTC, Techint, EBE e Queiroz Galvão não têm nenhum acordo com o MPF.

Passados mais de seis meses da condenação, entretanto, Dallagnol ainda não conseguiu negociar o "recall" com as três gigantes. Segundo o Valor apurou, as negociações avançaram quase nada e a possibilidade de um acordo é remota. Andrade, Camargo e, principalmente, Odebrecht têm insistido no argumento de que tudo o que podem pagar já está nos acordos de leniência. O valor acordado soma R$ 10,2 bilhões, em valores correntes.

A persistir essa situação, as três serão condenadas pelo TCU. É o que garante o ministro Bruno Dantas, relator do processo que trata das fraudes em Angra 3. "Se percebermos que não haverá "recall", tomarei a iniciativa de colocar o processo na pauta para julgamento na semana seguinte. E o único caminho é a inidoneidade", disse em entrevista ao Valor.

Se forem declaradas inidôneas, as empresas podem ficar até cinco anos sem assinar contratos com o poder público federal nem tomar empréstimos em bancos oficiais. No setor da construção pesada, esse tipo de impedimento pode significar a inviabilização dessas companhias.

A demora na apresentação de um desfecho, porém, não é exclusividade do MPF. As empreiteiras que foram declaradas inidôneas estão recorrendo no TCU e, oficialmente, ainda podem fazer negócios com o governo federal.

Mesmo ciente dos efeitos da inidoneidade, Dantas lembra que não pode dar as costas para a legislação, que determina o ressarcimento integral dos danos causados aos cofres públicos. Ele também não dá credibilidade aos argumentos de que as empreiteiras não podem pagar mais. "Isso é piada de mau gosto. As empresas roubaram do Estado brasileiro dezenas de bilhões de reais e querem convencer alguém de que o dinheiro evaporou?", indaga o ministro.

No tribunal há pouco mais de três anos, Dantas está em uma temporada de estudos no Max Planck Institute for Regulatory Procedural Law, em Luxemburgo. O ministro dá aulas no mestrado do Instituto de Direito Público (IDP) - que tem o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes como sócio majoritário - e é autor de mais de uma dezena de livros de direito.

"O que não pode é alguém celebrar acordos olhando para o próprio umbigo, sem observar as atribuições dos demais órgãos"

Além de alguns processos referentes a obras e empresas envolvidas na Operação Lava-Jato, o ministro é responsável pela relatoria dos termos de ajustamento de conduta entre as operadoras de telefonia e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Em março o TCU julgou sete empreiteiras que fraudaram uma licitação na usina de Angra 3. Quatro foram declaradas inidôneas e três tiveram o julgamento suspenso. O que explica essas três exceções?

Bruno Dantas: Das sete, três tinham celebrado acordo de leniência com o MPF [Odebrecht, Andrade e Camargo] e as outras quatro [UTC, Techint, EBE e Queiroz Galvão] não haviam cooperado com as investigações. Recebi um pedido do procurador Deltan Dallagnol, em nome da força-tarefa de Curitiba, para que as empresas colaboradoras tivessem tratamento privilegiado nos processos do TCU. Após várias rodadas de conversas entre os procuradores de Curitiba e os ministros do TCU, ficou estabelecido que a cooperação meramente na esfera penal seria insuficiente para o TCU, que possui uma missão institucional diversa da do MPF. Para eles, o principal objetivo a ser buscado são as provas da corrupção e da existência de organização criminosa. Para nós, são as provas de superfaturamento que viabilizarão o integral ressarcimento do erário. Como os acordos de leniência foram celebrados originariamente pelo MPF dentro de uma lógica muito particular, essencialmente penal, ficou acordado que os procuradores reabririam as negociações com a finalidade de obter das empresas o compromisso de cooperar também com as fiscalizações do TCU e de, ao fim, ressarcir integralmente o dano causado aos cofres públicos. Não se pode esquecer que os valores pagos pelas empreiteiras nos acordos com o MPF são irrisórios se comparados com o real desfalque que elas causaram ao Estado brasileiro, e isso não se deu por falha dos procuradores, mas porque o objetivo do MPF nunca foi calcular com precisão o valor do dano e nem obter o ressarcimento, mas sim aprofundar a investigação penal da corrupção. Para permitir essa tentativa de "recall" pelo MPF, o plenário do TCU aceitou suspender o julgamento temporariamente.

Valor: Acontece que, desde então, o MPF já solicitou por três vezes renovação do prazo dado pelo TCU. Passados mais de seis meses, por que ainda não houve uma solução para essas três empresas?

Dantas: O processo de negociação do "recall" é complexo e possui muitas nuances. É natural que as empresas resistam a cooperar com o TCU, especialmente porque sabem que dessa cooperação decorrerá o dever de restituir o que foi superfaturado. Mas é importante que se diga que o julgamento só se encontra suspenso porque o MPF tem nos afirmado que as conversas estão avançando. Desde março, já tivemos duas reuniões com procuradores. Sei também que eles já se reuniram com as empresas diversas vezes. A colaboração que a lei exige para que o acordo de leniência produza efeitos não só na esfera civil, mas também na administrativa, é com o Estado brasileiro, não para esta ou aquela instituição isoladamente. Portanto, se uma empresa aceita cooperar com o MPF, mas se recusa a fornecer ao TCU as notas fiscais e relatórios que demonstrarão o superfaturamento, fica claro que se trata de uma colaboração parcial, viciada e imprestável. Se percebermos que não haverá "recall", tomarei a iniciativa de colocar o processo na pauta para julgamento do plenário na semana seguinte. E o único caminho possível será o da inidoneidade.

Valor: Até quando o TCU está disposto aguardar por uma solução do MPF? Há uma data limite?

Dantas: Não se trata de aguardar uma solução do MPF. Na realidade, esse é um trabalho de cooperação que o doutor Deltan Dallagnol e os demais procuradores aceitaram fazer em nome do interesse público, para evitar ruídos e incompreensões. Claro que o TCU poderia realizar esse trabalho diretamente e apresentar ao MPF sua lista de exigências; os procuradores até nos incentivaram a fazer isso. Mas eu, pessoalmente, considero que o ideal é prestigiar o trabalho competente feito em Curitiba.

Valor: Odebrecht, Camargo e Andrade terão que restituir integralmente o dano causado para não serem declaradas inidôneas?

Dantas: Esse escândalo da Lava-Jato é cercado de muitas peculiaridades e incertezas, mas há um ponto em que todos os ministros titulares do TCU convergem, sem exceção: a Constituição brasileira não concedeu a qualquer agente público ou órgão de controle o poder de anistiar dinheiro roubado do erário. Nem o MPF, nem a CGU, nem a AGU e nem o TCU podem perdoar o dano causado por empresas corruptas. Pode-se negociar o parcelamento, com cláusula de ability to pay (capacidade de pagamento), a declaração de inidoneidade pela fraude à licitação e até mesmo a condenação solidária que obriga cada empresa a responder individualmente pelo valor total do prejuízo. Mas o valor principal do superfaturamento é absolutamente inegociável.

Valor: Representantes dessas empreiteiras têm dito que tudo o que podiam pagar já está nos acordos de leniência do MPF. O que o TCU pode fazer diante disso?

Dantas: Isso é uma piada de mau gosto. As empresas roubaram do Estado brasileiro dezenas de bilhões de reais e querem convencer alguém de que o dinheiro evaporou? Pelo cálculo dos auditores do TCU, os valores pagos nos acordos de leniência com o MPF representam uma parte ínfima do total desviado. Os próprios procuradores já disseram e reiteraram inúmeras vezes que jamais deram quitação às empresas e que sempre ressaltaram que haverá necessidade de recomposição integral do dano, como manda a lei. Esse tipo de discurso mostra falta de sinceridade e boa-fé nas negociações, e não se pode olvidar que boa-fé é requisito para a validade dos acordos. Sem ela, vale a letra dura da lei.

Valor: Bloqueio de bens pode ser uma alternativa para garantir a reparação integral dos danos?

Dantas: O bloqueio de bens depende de dois requisitos: provas robustas da responsabilidade da empresa e esvaziamento patrimonial que ponha em risco a recomposição do dano. O TCU analisa esses requisitos caso a caso. Mas há outros dispositivos legais à disposição, que igualmente são examinados e aplicados individualmente, como a declaração de inidoneidade, a desconsideração da personalidade jurídica tanto das holdings quanto dos acionistas controladores, e acréscimo de multa de até 100% do dano em caso de má-fé.

Valor: O senhor concorda com a tese de que deveria haver um balcão único para os acordos de leniência? Procuradores da Lava-Jato defendem que o acordo do MPF deve prevalecer sobre os demais.

Dantas: Como agente do Estado brasileiro, entendo ser irrelevante o balcão onde o acordo é negociado e assinado, desde que o "balconista" conheça todas as necessidades e objetivos institucionais dos órgãos que constitucionalmente estão autorizados a agir. Em bom português: se o MPF tiver a preocupação de abarcar em seus acordos cláusulas que contribuam para as investigações do TCU, do Cade, do Banco Central, da Receita, da CGU e da AGU, penso que ninguém em sã consciência pode ser contra. O que não pode é alguém celebrar acordos olhando para o próprio umbigo, sem observar as atribuições dos demais órgãos do Estado, e pretender vincular todo mundo. Felizmente, não vejo qualquer instituição com esse ímpeto no Brasil.

Valor: A declaração de inidoneidade do TCU afeta apenas os contratos com o poder público federal. Apesar disso, essas empresas podem continuar trabalhando com Estados e municípios. O senhor entende que a condenação do TCU poderia ser mais abrangente?

Dantas: Na realidade, essa é uma questão controversa. Há no TCU ministros que defendem a abrangência da declaração de inidoneidade para todas as esferas federativas. Há, inclusive, um acórdão antigo do tribunal nesse sentido. No entanto, como os processos referentes à Operação Lava-Jato possuem enorme potencial de judicialização, estamos optando pela interpretação mais conservadora.