Valor econômico, v. 17, n. 4358, 10/10/2017. Política, p. A7.

 

 

Propostas para segurança focam em punição

Lígia Guimarães

10/10/2017

 

 

Enquanto a violência cresce na escala das principais preocupações da população brasileira - foram 59 mil homicídios registrados no Brasil somente em 2015 -, o debate a respeito da segurança pública no Congresso Nacional parece não propor soluções para o cerne dos problemas, indica estudo que será divulgado hoje pela ONG Instituto Sou da Paz. Em vez de cobrar responsabilidades na atuação do poder público no combate ao grave problema da segurança pública - papéis pouco definidos pela Constituição - a maior parte dos projetos de lei apresentados na Câmara e no Senado em 2016 ateve-se ao endurecimento penal: propôs aumentar penas para crimes já existentes, ou criar novos crimes perante a lei.

"Estamos enchendo nossas cadeias e aumentando penas há 15, 20 anos. A situação só piora e insistimos nas mesmas saídas", critica o advogado Felippe Angeli, mestre em ciências políticas e assessor para advocacy do Instituto Sou da Paz que coordenou o estudo "O papel do Legislativo na segurança pública - Análise da atuação do Congresso Nacional em 2016". É a segunda vez que o Instituto realiza o estudo com a mesma metodologia, que analista projetos de lei, propostas de emenda constitucionais e leis promulgadas ao longo do ano, a partir da análise dos dados disponibilizados nos sites da Câmara e do Senado.

Na Câmara, a análise dos 463 projetos de lei que tratavam de matérias de segurança pública na Câmara no ano passado revelam que 16,4% (76 projetos) propunham a criminalização de condutas, incorporando um novo crime ao sistema penal. Outros 15,3% (71 projetos) propunham elevar a pena para crimes já previstos em lei, "em detrimento de medidas sistêmicas que possam ter um impacto duradouro na melhoria da segurança pública no país, que atravessa um dos piores momentos da história", destaca o relatório.

O retrato do desempenho do Senado ao propor medidas que melhorem a segurança pública é bem similar ao da Câmara. Dos 469 projetos apresentados pelos senadores, 80 referiam-se a segurança pública ou justiça criminal. Embora 22,85% tratassem de propostas para aumentar penas e 20% sobre criminalização de condutas, o maior percentual de projetos de lei do Senado - 27,5% - referia-se a mudanças no processo penal, o que o Instituto atribui à influência da Operação Lava-Jato.

"Entre vários objetivos, há propostas que buscam alterar mecanismos de colaboração com a justiça, como a colaboração premiada, outros que tratam da divulgação pela imprensa de informações interceptadas pela Justiça", cita o relatório.

 

 

Angeli, que monitora de perto a atividade legislativa em torno de propostas para melhorar a segurança pública, argumenta que mais eficiente seria, por exemplo, que o Congresso cobrasse mais responsabilidade do governo federal no combate à criminalidade, já que a União detém a maior parte da arrecadação orçamentária em relação a Estados e municípios.

Embora o direito social à segurança pública esteja previsto na Constituição de 1988, o texto não divide claramente entre União, Estados e municípios a responsabilidade sobre o investimento e a garantia da segurança pública ao cidadão. Define, apenas, que a gestão das polícias é atribuição dos Estados. Criar um sistema de segurança pública, atribuindo o papel da liderança e financiamento, por exemplo, seria papel importante do Congresso. "Já houve um debate nesse sentido mas a coisa não vai para frente porque muitas vezes para nesses interesses corporativos e em visões mais populistas do problema, na linha 'bandido bom é bandido morto'", exemplifica Angeli, que afirma que a polarização ideológica, agravada com o advento das redes sociais, muitas vezes "intoxica" e superficializa a busca por soluções eficientes.

O instituto destaca também que há anos o governo federal fracassa em tirar do papel um plano de segurança pública que englobe uma estratégia nacional. "Infelizmente, temos indícios que o poder legislativo federal não contribui para chamar a União à responsabilidade", afirma o estudo.

Angeli destaca que, na segurança pública brasileira, o escopo de atribuições e responsabilidades sobre as políticas públicas de segurança na Constituição é bem menos claro do que o de direitos como a saúde pública, educação e assistência social, que têm capítulos inteiros da Constituição dedicados a eles. "Você acaba reduzindo a segurança pública a um trabalho de polícia, o que não é. E não divide essas responsabilidades entre os três níveis da federação, em um país continental como o Brasil", afirma Angelli.

O relatório destaca também o crescimento da visão "policialesca" que tem dominado, na análise do instituto, os debates sobre segurança na Câmara. Poucos parlamentares - que em geral vieram de carreiras policiais ou militares das Forças Armadas - foram responsáveis por todas as discussões sobre o tema.

Em 2016, só 193 dos 513 deputados federais em exercício apresentaram ao menos um projeto que trata do tema da segurança pública e da justiça criminal em 2016, o que representa 38,2% dos parlamentares com assento na Câmara. Em 2015, ao menos 46% dos deputados haviam proposto alguma iniciativa em segurança.

Tal predominância ajuda a entender as razões pelas quais 15,3% dos projetos de lei apresentados sobre o tema polícia referiam-se a demandas da categoria policial: 48 projetos de lei abordavam programas assistenciais aos policiais e suas famílias ou regulamentação de gratificações. "Policiais são trabalhadores que querem melhorias de suas profissões. Mas não busca o que na nossa opinião é o mais importante, que deveria ser a integração das polícias, bem como a reforma", diz Angeli.

Dados levantados por Angeli apontam que, em 2002, havia apenas 7 deputados que se enquadravam em uma dessas categorias; em 2014, esse número subiu a 19. "A liderança inequívoca de parlamentares com origem em forças policiais resulta numa atividade legislativa ensimesmada na dimensão policial". Na visão dele, a combinação de crise política, econômica e violência crescente favorece o discurso de políticos que se dediquem exclusivamente à segurança, em especial aos que chamam para si a responsabilidade sobre a "garantia da ordem" em suas campanhas. "A sensação da população é de desordem, de abandono. E quando vem a pessoa que diz que vai colocar ordem, vou ser linha dura, isso gera apelo em um lugar que está tão bagunçado".

 

 

Enquanto a violência cresce na escala das principais preocupações da população brasileira - foram 59 mil homicídios registrados no Brasil somente em 2015 -, o debate a respeito da segurança pública no Congresso Nacional parece não propor soluções para o cerne dos problemas, indica estudo que será divulgado hoje pela ONG Instituto Sou da Paz. Em vez de cobrar responsabilidades na atuação do poder público no combate ao grave problema da segurança pública - papéis pouco definidos pela Constituição - a maior parte dos projetos de lei apresentados na Câmara e no Senado em 2016 ateve-se ao endurecimento penal: propôs aumentar penas para crimes já existentes, ou criar novos crimes perante a lei.

"Estamos enchendo nossas cadeias e aumentando penas há 15, 20 anos. A situação só piora e insistimos nas mesmas saídas", critica o advogado Felippe Angeli, mestre em ciências políticas e assessor para advocacy do Instituto Sou da Paz que coordenou o estudo "O papel do Legislativo na segurança pública - Análise da atuação do Congresso Nacional em 2016". É a segunda vez que o Instituto realiza o estudo com a mesma metodologia, que analista projetos de lei, propostas de emenda constitucionais e leis promulgadas ao longo do ano, a partir da análise dos dados disponibilizados nos sites da Câmara e do Senado.

Na Câmara, a análise dos 463 projetos de lei que tratavam de matérias de segurança pública na Câmara no ano passado revelam que 16,4% (76 projetos) propunham a criminalização de condutas, incorporando um novo crime ao sistema penal. Outros 15,3% (71 projetos) propunham elevar a pena para crimes já previstos em lei, "em detrimento de medidas sistêmicas que possam ter um impacto duradouro na melhoria da segurança pública no país, que atravessa um dos piores momentos da história", destaca o relatório.

O retrato do desempenho do Senado ao propor medidas que melhorem a segurança pública é bem similar ao da Câmara. Dos 469 projetos apresentados pelos senadores, 80 referiam-se a segurança pública ou justiça criminal. Embora 22,85% tratassem de propostas para aumentar penas e 20% sobre criminalização de condutas, o maior percentual de projetos de lei do Senado - 27,5% - referia-se a mudanças no processo penal, o que o Instituto atribui à influência da Operação Lava-Jato.

"Entre vários objetivos, há propostas que buscam alterar mecanismos de colaboração com a justiça, como a colaboração premiada, outros que tratam da divulgação pela imprensa de informações interceptadas pela Justiça", cita o relatório.

 

 

Angeli, que monitora de perto a atividade legislativa em torno de propostas para melhorar a segurança pública, argumenta que mais eficiente seria, por exemplo, que o Congresso cobrasse mais responsabilidade do governo federal no combate à criminalidade, já que a União detém a maior parte da arrecadação orçamentária em relação a Estados e municípios.

Embora o direito social à segurança pública esteja previsto na Constituição de 1988, o texto não divide claramente entre União, Estados e municípios a responsabilidade sobre o investimento e a garantia da segurança pública ao cidadão. Define, apenas, que a gestão das polícias é atribuição dos Estados. Criar um sistema de segurança pública, atribuindo o papel da liderança e financiamento, por exemplo, seria papel importante do Congresso. "Já houve um debate nesse sentido mas a coisa não vai para frente porque muitas vezes para nesses interesses corporativos e em visões mais populistas do problema, na linha 'bandido bom é bandido morto'", exemplifica Angeli, que afirma que a polarização ideológica, agravada com o advento das redes sociais, muitas vezes "intoxica" e superficializa a busca por soluções eficientes.

O instituto destaca também que há anos o governo federal fracassa em tirar do papel um plano de segurança pública que englobe uma estratégia nacional. "Infelizmente, temos indícios que o poder legislativo federal não contribui para chamar a União à responsabilidade", afirma o estudo.

Angeli destaca que, na segurança pública brasileira, o escopo de atribuições e responsabilidades sobre as políticas públicas de segurança na Constituição é bem menos claro do que o de direitos como a saúde pública, educação e assistência social, que têm capítulos inteiros da Constituição dedicados a eles. "Você acaba reduzindo a segurança pública a um trabalho de polícia, o que não é. E não divide essas responsabilidades entre os três níveis da federação, em um país continental como o Brasil", afirma Angelli.

O relatório destaca também o crescimento da visão "policialesca" que tem dominado, na análise do instituto, os debates sobre segurança na Câmara. Poucos parlamentares - que em geral vieram de carreiras policiais ou militares das Forças Armadas - foram responsáveis por todas as discussões sobre o tema.

Em 2016, só 193 dos 513 deputados federais em exercício apresentaram ao menos um projeto que trata do tema da segurança pública e da justiça criminal em 2016, o que representa 38,2% dos parlamentares com assento na Câmara. Em 2015, ao menos 46% dos deputados haviam proposto alguma iniciativa em segurança.

Tal predominância ajuda a entender as razões pelas quais 15,3% dos projetos de lei apresentados sobre o tema polícia referiam-se a demandas da categoria policial: 48 projetos de lei abordavam programas assistenciais aos policiais e suas famílias ou regulamentação de gratificações. "Policiais são trabalhadores que querem melhorias de suas profissões. Mas não busca o que na nossa opinião é o mais importante, que deveria ser a integração das polícias, bem como a reforma", diz Angeli.

Dados levantados por Angeli apontam que, em 2002, havia apenas 7 deputados que se enquadravam em uma dessas categorias; em 2014, esse número subiu a 19. "A liderança inequívoca de parlamentares com origem em forças policiais resulta numa atividade legislativa ensimesmada na dimensão policial". Na visão dele, a combinação de crise política, econômica e violência crescente favorece o discurso de políticos que se dediquem exclusivamente à segurança, em especial aos que chamam para si a responsabilidade sobre a "garantia da ordem" em suas campanhas. "A sensação da população é de desordem, de abandono. E quando vem a pessoa que diz que vai colocar ordem, vou ser linha dura, isso gera apelo em um lugar que está tão bagunçado".