O Estado de São Paulo, n. 45296, 23/10/2017. Política, p. A6.

 

'Sucesso depende da reação da sociedade', diz Moro

 Ricardo Brandt / Fausto Macedo

23/10/2017

 

 

Dallagnol diz que pressão da opinião pública ajuda a luta contra corrupção; eles estarão no ‘Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato’

 

 

A caminho do quinto ano de Lava Jato, não se pode afirmar que o quadro de impunidade nos crimes de corrupção no Brasil permanece inalterado. É o que acreditam duas figuras emblemáticas das investigações que abalaram o mundo político brasileiro, o juiz federal Sérgio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol.

Para eles, o sucesso da operação dependerá de como será a reação da sociedade daqui para frente. Moro e Dallagnol estarão no Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato para falar sobre as investigações de combate à corrupção, da Itália e do Brasil, junto com os magistrados Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo, que trabalharam na força-tarefa de procuradores de Milão criada 25 anos atrás.

O evento é uma associação entre o Estado e o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP) e vai ocorrer amanhã. O painel, reservado para convidados, será mediado pela jornalista Eliane Cantanhêde, colunista do Estado, e pela economista Maria Cristina Pinotti, do CDPP. Terá ainda a participação do diretor de Jornalismo do Estado, João Caminoto, e do economista Affonso Celso Pastore, do CDPP.

“Apesar da permanente sombra do retrocesso, não se pode afirmar que não houve mudanças no quadro de impunidade para esses crimes”, diz Moro, ao pôr Lava Jato e mensalão como partes de um ciclo de combate à impunidade de “poderosos”.

Coordenador da força-tarefa em Curitiba, que iniciou a Lava Jato em 2014, Dallagnol entende que a “virtude” das duas operações “foi um amplo diagnóstico da podridão do sistema político”. “Contudo, a virtude da Lava Jato é também sua maldição, pois o sistema político concentra o maior poder da República, no Congresso, e sua reação pode enterrar as investigações, como na Itália.”

Para juiz e procurador, é a sociedade que vai ditar se a operação brasileira vai se aproximar da Mãos Limpas em seu final – na Itália, houve alto índice de impunidade, após a reação política e o desinteresse popular.

“Se houver uma contínua pressão da opinião pública, imagina-se que até nossas lideranças políticas emperradas terão que adotar uma postura reformista”, diz Moro. “O Congresso pode colocar toda a operação abaixo numa madrugada. Basta a aprovação de um projeto de anistia. Por isso, os resultados da Lava Jato dependem primordialmente de como a sociedade vai reagir”, afirma o procurador.

 

Balanço

Ao todo , os procuradores italianos de Milão pediram que 3,7 mil pessoas fossem julgadas por crimes durante a operação Mãos Limpas, na Itália, durante os anos de 1990. Mas pouco mais de 700 foram condenadas.

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'A vergonha está do lado de quem se opõe a Lava Jato'

23/10/2017

 

 

ENTREVISTA - Sérgio Moro

Juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba

 

O que a Lava Jato tem a ver com a operação Mãos Limpas?

A Operação Mãos Limpas, por sua dimensão e impacto, foi uma grande inspiração para a Lava Jato.

 

Quais as semelhanças entre uma e outra?

Em ambas, as investigações revelaram não um ou alguns grandes crimes de corrupção, mas um sistema organizado de corrupção, na prática, a captura do Estado para o favorecimento de certos grupos empresariais privados, em detrimento da competição, tendo por contrapartida o pagamento habitual de vantagem financeira a agentes públicos e a agentes políticos para enriquecimento pessoal e financiamento ilícito eleitoral.

 

Quais os métodos das Mãos Limpas nos quais o senhor se inspirou para a Lava Jato?

A Mãos Limpas ilustrou que, sem o apoio da imprensa e da opinião pública, é muito difícil a condução de processos contra criminosos poderosos. Estes têm poder político e econômico que pode ser utilizado indevidamente para gerar impunidade, independentemente da culpa. Então, é necessário contrabalançar esse poderio, não só com a ação firme da Justiça, mas com o apoio da opinião pública. Daí a importância da publicidade e da transparência desses processos, da liberdade de expressão e de imprensa, isso não para manipular a opinião pública, mas para obter o apoio necessário através da demonstração da correção da ação da Justiça.

 

Qual a grande conquista da Lava Jato?

A Lava Jato se insere em um ciclo iniciado de maneira mais incisiva pela Ação Penal 470 (mensalão) no sentido de pôr um fim à impunidade dos crimes praticados pelos poderosos. Apesar da permanente sombra do retrocesso, não se pode afirmar que não houve mudanças no quadro de impunidade para esses crimes. Há que se manter uma infinita esperança de que esse é um caminho sem volta e que a impunidade dos barões da corrupção está com seus dias contados. Nessa perspectiva, mudanças de cunho mais permanente, como a execução da pena a partir de uma condenação em segunda instância, são fundamentais.

 

Qual a frustração da Operação Lava Jato?

As causas da corrupção sistêmica não foram enfrentadas por nossas lideranças políticas. O loteamento político de cargos públicos e que está na origem dos crimes na Petrobrás permanece forte como sempre, por exemplo. Se houver uma contínua pressão da opinião pública, imagina-se que até mesmo nossas lideranças políticas emperradas terão que adotar uma postura reformista quanto a esses temas. Mas é frustrante ver como isso é demorado.

 

Os inimigos das Mãos Limpas e da Lava Jato estão concentrados exclusivamente no meio político? Onde mais eles estão alojados?

Há, é certo, quem se oponha ao movimento anticorrupção, normalmente quem dele se beneficia. A vergonha está com eles. É claro, também há pontuais críticas desinteressadas, nenhuma ação pública está imune a elas. Em relação a elas, cumpre debater e eventualmente acolher. Mas quem mais importa são os amigos e, ainda que sob a sombra do retrocesso, são eles inúmeros.

 

Juiz. Para Moro, líderes políticos não enfrentam as causas da corrupção

 

A Mãos Limpas ilustrou que, sem o apoio da imprensa e da opinião pública, é muito difícil a condução de processos contra criminosos poderosos.”

 

Apesar da permanente sombra do retrocesso, não se pode afirmar que não houve mudanças no quadro de impunidade para esses crimes.”

 

“O loteamento político de cargos públicos e que está na origem dos crimes na Petrobrás permanece forte como sempre.”

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‘O Congresso pode pôr tudo abaixo em uma madrugada’

23/10/2017

 

 

ENTREVISTA - Deltan Dallagnol

Procurador da República e coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba

 

A caminho do quinto ano, a Lava Jato se aproxima ou se distancia da Mãos Limpas da Itália?

Há semelhanças e diferenças relevantes. Na década de 90, a Mãos Limpas revelou que a corrupção política na Itália estava por todos os lados. A Lava Jato revelou inicialmente um esquema gravíssimo na Petrobrás, mas seu avanço recente acabou por trazer à tona um monstro ainda mais assustador: esquemas semelhantes espalhados em órgãos federais, estaduais e municipais. Partidos e políticos no Brasil, como na Itália da Mãos Limpas, colocam no comando dos órgãos pessoas com a missão de arrecadar suborno. A virtude dessas operações foi um amplo diagnóstico da podridão do sistema político. Contudo, a virtude da Lava Jato é também sua maldição, pois o sistema político concentra o maior poder da República, no Congresso, e sua reação pode enterrar as investigações, como na Itália.

 

Quando o Congresso enterrou as 10 Medidas Contra a Corrupção e propôs a lei de abuso de autoridade, o senhor falou em ‘revival’ da Mãos Limpas no País.

À medida que a investigação atinge mais políticos e partidos, a coesão dos políticos contra a operação aumenta. Eles tentarão diferentes estratégias para mudar as leis e se livrar das punições. Continuarão tentando difamar a Lava Jato e erodir o apoio popular que a sustenta, o que abriria brecha para o esvaziamento da operação. Uma coisa é desfigurar propostas positivas; outra é, além disso, aprovar mudanças negativas nas mesmas leis. O custo político se tornou bem maior.

 

O senhor diz que, na Mãos Limpas, o trabalho da procuradoria se perdeu com a contraofensiva dos políticos e o desinteresse do povo. Isso pode ocorrer aqui?

Ainda é cedo para dizer que se verificará por aqui a ampla desconstrução das punições ocorrida na Itália. Contudo, o momento em que vivemos se aproxima muito de um ponto-chave no destino das duas operações. Depois de alguns anos de Mãos Limpas, as investigações estavam se encerrando, embora vários processos ainda estivessem começando. A diferença entre o tempo da mídia e o tempo dos processos judiciais ficou bastante perceptível. A população começou a se cansar da sequência de escândalos e as notícias começaram a se espaçar. Houve uma diminuição do interesse da sociedade italiana pela operação. Nessa mesma época, as investigações já haviam alcançado políticos, que tentaram estigmatizar os investigadores com falsas acusações de abuso, para que fossem vistos pela opinião pública como criminosos. Tudo somado, criouse clima favorável a mudanças nas leis: condutas foram descriminalizadas, prazos prescricionais diminuíram e políticos corruptos foram anistiados.

 

Com base na Mãos Limpas, o cenário é desfavorável?

Certamente. Contudo, é impossível prever o que acontecerá porque isso depende de um fator que ninguém controla: como a sociedade vai se comportar no futuro. A peculiaridade da Mãos Limpas e da Lava Jato é que elas não revelaram corrupção de um político ou de um grupo, mas de grande parte da classe política. O objetivo da operação é colocar essas pessoas poderosas debaixo da lei, mas há um problema: elas fazem as leis.

 

Como foi possível a Operação Lava Jato chegar até aqui?

A resposta é simples: o grupo de agentes públicos não avançou sozinho, mas com a sociedade. Numa democracia, a fonte última do poder é o povo. Foi o povo que sustentou a investigação até hoje e, nessa dimensão, ela se trata de um patrimônio nacional. O desafio é manter o apoio da sociedade.

 

Na Itália fala-se em 20% de absolvições e 40% de prescrições. A Lava Jato espera obter índices mais positivos?

A Lava Jato tem ‘tirado água de pedra’ ao conseguir resultados significativos dentro de um sistema de justiça criminal que foi feito para não funcionar contra pessoas poderosas. É preciso ainda aguardar os julgamentos do Supremo Tribunal Federal. O Supremo está para decidir, aliás, possível restrição do foro privilegiado que atingiria a maior parte dos políticos investigados. Outro modo de retirar o foro dos investigados é pelo voto, em 2018. Se os investigados não forem reeleitos, passarão a responder perante Varas Federais como a do juiz Sérgio Moro. Tudo isso pode colaborar para que os corruptos respondam pelos seus crimes. Agora, o Congresso pode colocar toda a operação abaixo numa madrugada. Basta a aprovação de um projeto de anistia. Por isso, os resultados da Lava Jato dependem primordialmente de como a sociedade vai reagir a esse tipo de situação.

 

A corrupção pode piorar no País, se não houver punições?

Com certeza. A responsabilização dos corruptos tem efeito dissuasório. Quanto maiores forem a probabilidade e o montante da punição e quanto mais se recuperar o dinheiro desviado, menos interessante fica se corromper no Brasil. A razão pela qual parlamentares continuam praticando crimes depois da Lava Jato é que as imunidades do cargo e o foro lhes concedem amplas proteções. Agora, é bom dizer que apenas punições não resolvem. É preciso avançar para reformas anticorrupção no sistema político, no sistema de justiça e outras áreas.

 

Como esperar a participação de investigados nessas reformas?

Há, sim, esperança. Entidades da sociedade civil estão trabalhando num grande pacote anticorrupção que aproveita grande parte das 10 Medidas e vai além, propondo melhorias na transparência, nas licitações, no sistema eleitoral, nas regras de compliance e na educação de crianças e jovens. Outras entidades estão se unindo para fazer em 2018 uma grande campanha anticorrupção. A iniciativa parte do pressuposto de que é importante filtrar, dentre os candidatos, aqueles que tenham um compromisso claro com a causa anticorrupção. Se tiver sucesso, essa campanha será uma forma de proteger a própria Lava Jato. Com uma renovação significativa do Congresso, grande parte dos interessados em esvaziá-la não estará mais lá a partir de 2019.

 

Procurador. Dallagnol defende renovação ‘significativa’ no Congresso

 

“O grupo de agentes públicos não avançou sozinho, mas com a sociedade. O desafio é manter o apoio da sociedade (à Operação Lava Jato).”

 

É impossível prever o que acontecerá (com a Lava Jato) porque depende de um fator que ninguém controla: a sociedade.”

 

A virtude da Lava Jato é também sua maldição, pois o sistema político concentra o maior poder da República, no Congresso.”