EMBATE NO PRÓPRIO GOVERNO

RENATA MARIZ

 

 

 

 

 A portaria ministerial que modificou regras do combate ao trabalho escravo no país causou uma cisão dentro do próprio governo. De um lado, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, expressou apoio à decisão dizendo que ela “vem organizar um pouco a falta de critério nas fiscalizações”. Do outro, a ministra Luislinda Valois, dos Direitos Humanos, admitiu que “vai haver retrocesso”, mas tentou minimizar o embate, enquanto Flávia Piovesan, secretária nacional de Cidadania do ministério, apontou a medida como “inconciliável com o Estado democrático de direito”.

O silêncio do Ministério dos Direitos Humanos, ligado diretamente ao tema do trabalho escravo, incomodou os setores que trabalham no combate ao problema. Ontem, procurada pelo GLOBO, a ministra Luislinda evitou se posicionar de forma contundente contra a portaria, mas disse acreditar que “vai haver retrocesso”, para depois relativizar as consequências da medida e defender o governo:

— Talvez atrapalhe um pouco para avançarmos ou pelo menos mantermos a situação de vanguarda em que nós estamos. Mas tenho certeza de que a intenção não foi atrapalhar nem retroceder.

Subordinada a Luislinda, Flávia Piovesan, no entanto, afirmou que leu a portaria ontem com “perplexidade, surpresa e profunda preocupação”. Até porque a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), principal formuladora de políticas na área, não foi sequer ouvida sobre as novas regras.

A secretária — que está de saída do governo para ser membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA — apontou como principais problemas da portaria a mudança de conceitos que levam à caracterização do trabalho análogo ao escravo apenas quando há privação do direito de ir e vir, e a infinidade de requisitos para que a fiscalização ocorra:

— A portaria praticamente inviabiliza ou cria óbices quase que intransponíveis para a diligente, devida e eficiente fiscalização do trabalho escravo. Quem está submetido a trabalho escravo não é só quem está restrito de liberdade, mas quem tem aviltada sua dignidade humana. A portaria afronta e viola a legislação brasileira.

Para Blairo Maggi, a nova portaria editada pelo Ministério do Trabalho, que recebeu críticas de órgãos ligados ao combate ao trabalho escravo, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), protege os empregadores de abusos cometidos pelos auditores fiscais. Os profissionais tinham, até então, prerrogativa para lavrar o auto de flagrante, relatando a situação encontrada, e dar início a um procedimento administrativo, no qual era garantida a defesa do empregador e dois níveis de recurso. Agora, com a nova portaria, os auditores terão de ser acompanhados por um policial, que registrará boletim de ocorrência para que a inspeção seja válida. Além disso, terão de obrigatoriamente fazer “fotos que evidenciem cada situação irregular encontrada”, entre outros requisitos. Para Maggi, tais normas impedirão a influência de “questões ideológicas” na inspeção.

“Ninguém quer ou deve ser favorável ao trabalho escravo, mas ser penalizado por questões ideológicas ou porque o fiscal está de mau humor não é justo. Parabéns, Michel Temer. Parabéns ao ministro Ronaldo Nogueira”, frisou o ministro da pasta de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em mensagem a amigos. A assessoria do ministro enviou ao GLOBO a íntegra da mensagem e explicou se tratar de um posicionamento pessoal de Maggi.

 

AUDITORES FISCAIS PARAM EM DEZ ESTADOS

Ontem, auditores fiscais de dez estados com histórico grave de violações, como Pará e Mato Grosso, decidiram paralisar as fiscalizações. “Diante da insegurança jurídico-administrativa da continuidade das ações em andamento e das planejadas, informamos a impossibilidade de cumprimento do atual planejamento, com a momentânea paralisação das ações fiscais, até que a situação seja resolvida”, diz a nota, assinada nominalmente pelos auditores. O comunicado cita leis e portarias da legislação nacional, além de tratados e convenções internacionais, que estariam sendo violados pela portaria.

Outra reação forte veio dos ministérios públicos Federal (MPF) e do Trabalho (MPT), que recomendaram a Ronaldo Nogueira a revogação da portaria. O ministro tem dez dias para se manifestar sobre a recomendação, que faz parte de um “procedimento preparatório que apura a ilegalidade da portaria”. Caso rejeite, os órgãos deverão adotar medidas judiciais para derrubar as novas normas.

A recomendação aponta que a portaria do governo “traz conceitos tecnicamente falhos dos elementos caracterizadores do trabalho escravo, sobretudo de condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas, em descompasso com a jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal Federal”.