O Estado de São Paulo, n. 45298, 25/10/2017. Política, p.A8

 

 

 

 

‘Mãos limpas' faz alerta para Lava Jato consolidar avanços

Ex-procuradores italianos dizem que combate à corrupção no país retrocedeu; Moro e Dallagnol defendem reformas para Brasil ‘ir além’

Por: Marianna Holanda

 

A corrupção na Itália, 25 anos depois de deflagrada a Operação Mãos Limpas, voltou para o mesmo patamar em que se encontrava antes das investigações, segundo um dos integrantes da força-tarefa do país. O desfecho da operação, que inspirou a Lava Jato, faz soar um alerta. No Brasil, protagonistas da investigação defendem “ir além” dos processos judiciais, avisam que a Lava Jato não vai “salvar” o País e cobram a aprovação de reformas para combater desvios.

As conclusões foram apresentadas na terça, 24, no Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato, promovido pelo Estado, em parceria com o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP). A experiência que os italianos compartilharam não foi das mais otimistas, mas Gherardo Colombo, juiz aposentado e promotor que conduziu as investigações, espera que possa contribuir para o Brasil.

Representando a força-tarefa da operação brasileira, que caminha para o quarto ano, o procurador Deltan Dallagnol deu o aviso: “Os italianos perderam a oportunidade de fazer reformas necessárias para diminuir a corrupção. Reformas políticas, estruturais, de educação”.

Colombo relatou que a Mãos Limpas encontrou um sistema “muito coeso”. “Não é que faltavam provas, é que o sistema de corrupção era muito forte a ponto de se proteger, de forma que hoje a corrupção na Itália é a mesma do que quando começou a Mãos Limpas.”

Em 13 anos, a operação italiana contabilizou mais de 4 mil envolvidos. Segundo o ex-investigador, dois fatores influenciaram para a corrupção continuar existindo no país. Primeiro, a reação da classe política, que mudou as leis para proteger investigados, iminuindo, por exemplo, o tempo de prescrição de crimes. Com isso, disse Colombo, 40% dos envolvidos nos inquéritos saíram impunes.

Outra “estratégia” da classe política, segundo Piercamillo Davigo, presidente da seção criminal da Corte de Cassação da Itália, foi o silêncio. “É o comportamento típico das associações criminosas: manter o silêncio para beneficiar seus protegidos”, disse Davigo. O segundo fator foi o descrédito da operação na opinião pública, de acordo com Colombo. “Essa nossa intervenção criava uma espécie de tensão social, é difícil manter o interesse muito elevado.”

 

Apoio. No Brasil, a operação anticorrupção recebe o apoio de 94% da população, segundo o levantamento Pulso Brasil, do instituto Ipsos, divulgado na segunda pelo Estado. Por outro lado, o índice dos que acreditam que “a classe política vai acabar com a Lava Jato” subiu de 19% para 33%, entre julho e setembro deste ano.

Uma pergunta sobre os resultados duradouros da operação veio da plateia: “A população brasileira parece sem esperanças. Como motivar a sociedade?” Ao responder, o juiz Sérgio Moro, da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba, comparou o combate à corrupção ao processo de abolição da escravidão no Brasil, no século 19.

“O que nós temos é que a Lava Jato, a meu ver, se insere num ciclo iniciado em 2012 e há, sim, uma redução da impunidade. Acho que estamos num processo de amadurecimento da nossa democracia. Há razões para que mantenhamos a esperança”, afirmou Moro.

Dallagnol defendeu a institucionalização dos resultados para impedir o esvaziamento da Lava Jato – assim como aconteceu na Itália, segundo ele.

O procurador ponderou, contudo, que a operação não vai “salvar” o País. “Muitos acreditam que a Lava Jato vai transformar o Brasil, mas precisamos ver o exemplo da Itália. Nosso discurso não é de que a operação vai salvar o País. Nossa atuação é limitada. É preciso ir muito além disso, e não há solução para isso fora do sistema político.”

 

Reformas. A resposta para combater o desânimo e, ao mesmo tempo, o esvaziamento da Lava Jato foi unanimidade entre procurador e juiz: ir além dos processos judiciais, com reformas em todas as esferas. Moro, que disse nunca ter escondido a inspiração na Mãos Limpas, disse ficar “até ressentido” quando falam que a operação italiana fracassou.

“Os processos judiciais são importantes, a redução da impunidade é fundamental, porque se esses crimes não têm resposta institucional, a tendência é eles crescerem. Nós temos um passado de impunidade que é a prova viva disso. Mas a redução da impunidade não é condição suficiente para se superar esse quadro. Para tanto, são necessárias reformas para diminuir incentivos e oportunidades de corrupção”, afirmou o magistrado.

Realizado em São Paulo, o painel com Moro, Dallagnol, Davigo e Colombo foi mediado pela jornalista Eliane Cantanhêde, colunista do Estado, e pela economista Maria Cristina Pinotti, do CDPP.

 

 

 

 

Fôlego da operação brasileira está nas mãos do Supremo

Para Moro e Dallagnol, pelo menos quatro pontos discutidos na Corte podem mudar os rumos de investigações
Por: Beatriz Bulla

 

Beatriz Bulla

 

O futuro da Lava Jato passa pelas mãos dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal de acordo com dois dos principais protagonistas da maior operação de combate à corrupção do País: o juiz Sérgio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol. Ao menos quatro pontos discutidos na Corte, segundo eles, são considerados essenciais: a restrição ao foro privilegiado, o uso das prisões preventivas, a execução da pena após decisão de segundo grau de Justiça e as delações premiadas.

Dallagnol atacou: “O dinheiro continua circulando em malas anos depois do início da Lava Jato. Regras são gestadas no Congresso Nacional para beneficiar políticos. Ministros do Supremo soltam e ‘ressoltam’ corruptos poderosos. Regras estão sendo gestadas no STF que implicarão enormes retrocessos na luta contra a corrupção”.

O coordenador da força-tarefa em Curitiba disse ainda que o Supremo vinha sendo “muito firme” na manutenção de preventivas, mas que os “recentes sinais” preocupam a Lava Jato. “Um dos argumentos é o de que as prisões preventivas têm durado muito tempo. Até escutamos a expressão de que o Supremo tem um encontro marcado com as prisões cautelares, e realmente teve porque várias pessoas foram soltas a partir daí”, afirmou o Dallagnol.

Moro seguiu a mesma linha e defendeu as preventivas. Segundo ele, a legislação “prevê recursos mais drásticos para interromper essas carreiras criminosas”. O juiz afirmou que não há excesso de prazos nas preventivas, considerando que as condenações ocorrem em “meses”.

A nova preocupação dos dois é a revisão do instrumento da delação premiada. Dallagnol disse ter se assustado ao ouvir novamente a expressão que o “Supremo tem um encontro marcado com as delações”. “Isso ( a expressão) me traz calafrios”, afirmou o procurador.

 

Colaborações. Desde setembro, um grupo de ministros da Corte dá sinais de que há ambiente para questionar delações. No dia 11, quando o Supremo decidiu que os parlamentares podem rever medidas cautelares impostas a parlamentares, Gilmar Mendes afirmou que ele e seus colegas “certamente” terão um “encontro marcado com a validade das provas” – ao se referir ao aproveitamento do que foi produzido com base na delação premiada do Grupo J&F.

Sem citar a Corte, Moro defendeu o instrumento de colaboração. Afirmou que a delação é ferramenta importante e, no caso de críticas, o caminho é “aprimorar o instituto e não propriamente, como muitos fazem, buscar sua eliminação”.

O juiz evitou se pronunciar sobre a delação da J&F, mas disse que há quem reclame de benefícios concedidos a um delator como forma de evitar a atenção para o conteúdo do que foi delatado. “Há muita gente que reclama da impunidade que eventualmente é concedida por esses acordos, mas o que afronta essa pessoa não é a impunidade decorrente do colaborador, mas o fato de que aquele está revelando provas contra sua má conduta”, disse o juiz.

 

Segunda instância. Um ponto crucial em discussão na Corte, na visão do procurador e do juiz, é a manutenção da possibilidade de prisão após a confirmação da sentença em corte colegiada. O Supremo, na avaliação de Moro, teve sensibilidade para perceber que “justiça sem fim é justiça nenhuma”. O juiz defendeu a manutenção do atual entendimento. “Alguns ministros dizem que podem mudar de opinião e eu acho que existe uma expectativa da sociedade, da imprensa, dos demais operadores que isso não mude.”

Dallagnol previu um cenário de “ampla impunidade” caso a Corte altere o entendimento. “Você vai ter processos em que as pessoas com ótimos e hábeis advogados vão explorar brechas da lei para que não acabem sendo punidas nunca”, disse.

Os dois concordaram que é necessário alterar o sistema de foro privilegiado. Dallagnol considerou que o STF pode “agilizar muito” as investigações se restringir o foro a crimes cometidos pelo parlamentar no exercício do mandato vigente. Moro lembrou que a Corte é “constitucional” e não foi feita para acompanhar processos penais. “Imagino a frustração do ministro que quer discutir temas relevantes para a sociedade inteira e, em vez disso, fica preso para decidir busca e apreensão, quebra de sigilo, julgamento de provas. É um desvirtuamento”, afirmou o juiz.