Valor econômico, v. 17, n. 4362, 17/10/2017. Brasil, p. A6.

 

 

Portaria flexibiliza combate ao trabalho escravo

Ricardo Mendonça

17/10/2017

 

 

Surpreendido pela publicação de uma portaria do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que altera - e na opinião de vários especialistas, dificulta - a fiscalização e o combate ao trabalho escravo no Brasil, o secretário do setor de inspeção da pasta, João Paulo Ferreira Machado, distribuiu um memorando orientando os cerca de 2.400 auditores da área que desconsiderem as novas normas ditadas pelo governo.

A portaria publicada ontem no "Diário Oficial" promove profundas alterações nos procedimentos relacionados à fiscalização e altera o conceito de trabalho escravo no país. Define que o crime só se caracteriza se houver cerceamento de liberdade, estabelece que uma empresa flagrada só entrará no cadastro de empregadores autuados (a chamada Lista Suja) mediante determinação do ministro e fixa que a divulgação do cadastro também só ocorrerá "por determinação expressa" do titular da pasta.

Em outro trecho, a portaria estabelece que o andamento de processo administrativo relacionado a trabalho escravo só poderá ocorrer se o relatório da fiscalização for acompanhado por boletim de ocorrência (BO) policial.

Distribuído aos auditores fiscais poucas horas após a publicação da portaria, o memorando-circular nº 61, assinado por Machado, sustenta que os responsáveis pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), órgão interno do ministério, não participaram de qualquer estudo para a edição das novas regras ditadas pelo ministro.

O memorando também afirma que, em análise inicial, a SIT detectou "vícios técnicos e jurídicos" na nova portaria e "aspectos que atentam" contra a Constituição, a Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Código Penal.

Depois de dizer que pleiteará a revogação da nova norma, o secretário de inspeção estabelece a manutenção dos procedimentos anteriores: "A SIT orienta seus auditores a manter, por ora, as práticas conduzidas pelos normativos que até então regularam a fiscalização para a erradicação do trabalho em condições análogas à de escravo, notadamente da Instrução Normativa nº 91, de 5 de outubro de 2011, e a Portaria Interministerial 04/2016", diz.

A portaria foi severamente criticada por especialistas no assunto. "Foi um ato de extrema violência por parte do governo", disse Tiago Cavalcanti, coordenador nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho. "Não é um retrocesso. Representa o fim do combate ao trabalho escravo no país. A exigência de restrição de liberdade de locomoção para caracterização do crime é um enorme equívoco. Se essa regra valesse desde 1995, quando o sistema de combate ao trabalho escravo começou, o número de libertações teria sido insignificante."

Nos bastidores, a portaria foi interpretada como mais uma concessão do presidente Michel Temer à bancada ruralista do Congresso, que há anos reclama das normas do setor.

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) soltou nota defendendo pontos da portaria, mas informou que não participou de sua elaboração e assinalou que, apesar de ver a norma como positiva, a considera insuficiente. "A portaria vem ao encontro de algumas pautas da FPA e diminui a subjetividade da análise. No entanto, não participamos de nenhuma tratativa com o Poder Executivo sobre o assunto."

Diante da repercussão negativa da portaria, o Ministério do Trabalho soltou nota afirmando que a nova norma "aprimora e dá segurança jurídica à atuação do Estado brasileiro, ao dispor sobre trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo". A nota diz também que o combate a esse tipo de crime "é uma política pública permanente [...] que vem recebendo todo o apoio administrativo desta pasta".

No fim da tarde, a nota foi atualizada com a inclusão de um parágrafo. "Entre as principais medidas decorrentes da portaria estão as seguintes: a partir de agora, um processo criminal será aberto de forma simultânea à emissão do auto de infração; a Polícia Federal estará inserida nas ações; e as multas terão aumentos que, em alguns casos, chegarão a 500%".

Nenhuma dessas três medidas, porém, aparece explicitamente no texto da portaria publicada ontem. Questionado pelo Valor, o chefe de gabinete substituto da pasta, Admilson Moreira, reconheceu que a PF já participa de ações de fiscalização. Afirmou que o aumento das multas é um item da reforma trabalhista que passará a vigorar em novembro.

Moreira disse também que a abertura de processo criminal simultânea é decorrência de um dispositivo da portaria que instrui envio de ofício à PF como condição para andamento de processo administrativo. Segundo ele, o ministro do Trabalho não tem informação sobre o memorando da SIT que orienta auditores a manter os procedimentos antigos.