O Estado de São Paulo, n. 45292, 19/10/2017. Economia, p. B1.

 

Dodge e FHC veem retrocesso em portaria

Julia Affonso / Elizabeth Lopes

19/10/2017

 

 

Ambos pediram ao governo federal a revogação da medida editada esta semana que modifica regras de combate ao trabalho escravo no País
 
 
 

As críticas à portaria que modifica as regras de combate ao trabalho escravo ganharam ontem o reforço de nomes como o da procuradorageral da República, Raquel Dodge, e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Ambos classificaram a medida como um ‘retrocesso’ e pediram a revogação da portaria que foi editada na última segunda-feira pelo governo federal.

As novas normas mudam a punição de empresas que submetem trabalhadores a condições degradantes e análogas à escravidão. Entre outras coisas, elas determinam que só o ministro do Trabalho pode incluir empregadores na Lista Suja do Trabalho Escravo, que dificulta a obtenção de empréstimos em bancos públicos. A nova regra altera também a forma como se dão as fiscalizações, além de dificultar a comprovação e punição desse tipo de crime.

Raquel Dodge se encontrou ontem com o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, e oficializou o pedido de revogação da portaria. Ela entregou ao ministro um documento em que chama atenção para as violações constitucionais que podem ser efetivadas a partir do cumprimento da norma, além de uma recomendação elaborada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). “A por- taria volta a um ponto que a legislação superou há vários anos”, afirmou Raquel.

Segundo a procuradora-geral, a proteção estabelecida na política pública anterior tem o propósito de impedir ações que ‘coisificam’ o trabalhador, que está na raiz do conceito de escravidão. Raquel Dodge destacou que, na caracterização da condição análoga à de escravidão, é importante verificar a combinação de fatores que atentam contra a dignidade humana do trabalhador. “Há casos em que há consentimento do trabalhador, mas em situações como de coação, por exemplo, isso não é váli- do sob a ótica do direito”, disse.

No ofício, Dodge afirma que o trabalho escravo viola a dignidade e não apenas a liberdade da pessoa humana. “É por esta razão que, ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a Portaria nº 1129 fere a Constituição.”

Fernando Henrique Cardoso (PSDB) usou seu perfil no Facebook para criticar a portaria. “Considero um retrocesso inaceitável a portaria do Ministério do Trabalho que limita a caracterização do trabalho escravo à existência de cárcere privado. Com isso, se desfiguram os avanços democráticos que haviam sido conseguidos desde 1995, quando uma comissão do próprio ministério, ouvindo as vozes e ações da sociedade, se pôs a fiscalizar ativamente as situações de superexploração da força de trabalho equivalentes à escravidão”, diz FHC em sua página pessoal no Facebook.

“Em um País como o nosso, no qual a escravidão marcou tanto a cultura, é inaceitável dificultar a fiscalização de tais práticas. Espero que o presidente da República reveja esta decisão desastrada.”

Artistas também usaram as redes sociais para protestar contra a medida. Caetano Veloso, Diogo Nogueira, Alessandra Negrini e Letícia Sabatella, por exemplo, compartilharam um post que diz que “Temer passou dos limites”.

A despeito das reações, até ontem, o presidente Michel Temer estava disposto a manter a portaria, a fim de não criar em- bates com a bancada ruralista no Congresso, às vésperas da votação da segunda denúncia contra ele na Câmara dos Deputados. Procurado para se manifestar sobre as declarações de Dodge e de Fernando Henrique, o Palácio do Planalto disse que quem trata do assunto é o Ministério do Trabalho.

 

A favor. Em meio às críticas, o governo recebeu ontem o apoio da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que se manifestou por meio de nota a favor da portaria. Segundo a associação, a medida aumenta a segurança jurídica das empresas, incentiva a geração de empregos e combate o “fanatismo ideológico” nas esferas trabalhistas.

“A prática de trabalho análogo ao escravo constitui conduta gravíssima, que deve ser duramente combatida pelo Estado. Mas nem por isso sua discussão pode ser contaminada pelo fanatismo ideológico que se incrustou nas instâncias trabalhistas nas últimas décadas”, ressaltou o presidente da Abrainc, Luiz Antonio França. “O tema exige sobriedade e bom senso, qualidades cada vez mais raras no cenário atual”, acrescentou. A entidade afirma que o descumprimento de algumas normas de segurança e saúde do trabalho, mesmo por omissão ou erro sem intenção, era suficiente para configuração do crime e inclusão das empresas na Lista Suja, sem o devido processo judicial.

 

Redes sociais. ‘Espero que o presidente reveja esta decisão desastrada’, disse FHC