O Estado de São Paulo, n. 45294, 21/10/2017. Economia, p.B4

 

 

 

 

Portaria do trabalho escravo vai ao STF

Duas ações pedem que novas regras sejam consideradas inconstitucionais; para a CNI, porém, medida propicia maior segurança jurídica

Por: Rafael Moraes Moura / Breno Pires

 

Rafael Moraes Moura

Breno Pires / BRASÍLIA

O partido Rede Sustentabilidade e a Confederação Nacional das Profissões Liberais entraram com ações no Supremo Tribunal Federal para suspender a portaria que altera as regras de combate ao trabalho escravo. Os dois processos estão com a ministra Rosa Weber.

O partido e a confederação pedem ao STF suspensão, por liminar, dos efeitos da portaria e que, em julgamento, ela seja declarada inconstitucional. A norma foi publicada na última segunda-feira e tem sido alvo de críticas de diversos setores, entre eles a própria Procuradoria-Geral da República (PGR).

As novas regras mudam a punição de empresas que subme- tem trabalhadores a condições degradantes de trabalho e análogas à escravidão. Entre outras coisas, elas determinam que só o ministro do Trabalho pode divulgar o nome dos empregadores incluídos na Lista Suja do Trabalho Escravo, que dificulta a obtenção de empréstimos em bancos públicos. Também alteram a forma como se dão as fiscalizações, além de dificultar a comprovação e punição desse tipo de crime.

A Rede Sustentabilidade alega que a portaria viola os direitos à liberdade, à igualdade e ao trabalho digno. Em sua ação, o partido menciona um voto da própria ministra Rosa Weber em julgamento no STF em 2012, quando o plenário discutiu um caso envolvendo a acusação de que trabalhadores do setor de cana-de-açúcar estavam trabalhando em condições análogas à escravidão. “Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusi- ve do direito ao trabalho digno”, disse a ministra à época.

Por sua vez, um dos pontos questionados pela Confederação Nacional das Profissões Liberais é a definição que a porta- ria faz do termo “jornada exaustiva”, considerada “a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”.

Defesa. Em contraponto às criticas feitas à portaria, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou uma nota on- tem apoiando a medida. Para a entidade, a portaria não enfraquece a luta contra o trabalho escravo, “tampouco abranda a legislação que conceitua este crime”. “Pelo contrário, ela representa um importante avanço na definição de um conceito mais claro sobre trabalho escravo. Propicia também maior segurança jurídica, evitando que empresas sejam acusadas injustamente, em função de posições subjetivas e até ideológicas de fiscais, e possibilitando uma aplicação mais eficaz da legislação”, diz a CNI. A Confederação diz ainda acreditar que a portaria vai definir com mais clareza os parâmetros para o trabalho forçado, para a jornada exaustiva, para a condição degradante e para a condição análoga ao trabalho escravo.

Mas, em meio às fortes críticas, o governo já admitiu recuar em alguns pontos da portaria. Qualquer mudança, porém, só deve ser feita após a votação, na Câmara dos Deputados, da segunda denúncia contra o presidente Michel Temer por obstrução de Justiça e formação de quadrilha (ver abaixo).

 

PERGUNTAS & RESPOSTAS

O que diz a portaria

 

1. De que maneira a portaria publicada pelo governo dificulta o combate ao trabalho escravo no Brasil?

 

O texto estabelece que para ser caracterizada uma situação de trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante ou trabalho análogo à escravidão há requisitos diretos que devem ser observados. Para o trabalho análogo à escravidão, por exemplo, o fiscal tem agora de constatar e provar a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição; o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida; a manutenção de segurança armada para reter o trabalhador no local de trabalho; e a retenção de documentação pessoal do trabalhador. Basta uma dessas condições não ser constatada ou documentada para invalidar um eventual processo contra a prática.

 
 

 

2. Como a atuação dos fiscais do Ministério do Trabalho ficará mais restrita a partir de agora?

 

Para o processo poder ser encaminhado à Justiça, o fiscal do Ministério do Trabalho precisa atender a vários requisitos. Senão, o processo perde a validade e é devolvido ao fiscal, que vai ter de começar a instruí-lo do zero. O problema é que, se isso acontecer, vai haver situações em que o fiscal não vai mais conseguir colher a prova que estava lá antes. Por exemplo, se ele havia encontrado um galpão irregular para os trabalhadores, o espaço pode ser desmontado nesse meio tempo. A portaria torna obrigatório que haja fotos e descrição detalhada de cada situação irregular encontrada na da ação de fiscalização. Os fiscais também precisam ser acompanhados por uma autoridade policial e, para encaminhar um processo, será necessário um boletim de ocorrência lavrado por aquela autoridade. Além disso, os fiscais precisam ter um comprovante de recebimento do relatório da fiscalização assinado pelo empregador que for alvo da ação que encontrou práticas de trabalho ilegais. Cumprir esses requisitos um a um dificulta a caracterização das práticas ilegais de trabalho.

 

3. O Código Penal do País era suficientemente claro ao estabelecer o conceito de trabalho análogo à escravidão?

A caracterização de um abuso do trabalhador era muito clara. Mas existia uma zona menos clara. São situações a que um empregador submete seus trabalhadores que não estavam plenamente adequadas e mereciam ajustes. Mas também estavam longe de ser uma condição análoga à escravidão. Mesmo assim, houve ações movidas pelo Ministério Público Federal (MPF) em casos como esses. A ideia com a portaria é ter uma norma de aplicação menos subjetiva.

 

 

 

 

Sob pressão, presidente admite que pode fazer ajustes na medida

Michel Temer disse que pode acatar mudanças sugeridas pela Procuradora Geral da República
Por: Carla Araújo

 

 

 

Carla Araújo / BRASÍLIA

 

 

Diante da pressão de diversos setores e entidades, incluindo a nova Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, o presidente Michel Temer admitiu que deve fazer ajustes na portaria que modifica as regras de combate ao trabalho escravo. Em entrevista ao site Poder 360, Temer afirmou que deve acatar sugestões feitas pela PGR e citou como uma das possíveis alterações estabelecer uma delegacia na Polícia Federal de combate a crimes do trabalho escravo.

Segundo fontes, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, e o diretor da Polícia Federal, Leandro Daiello, não tinham conhecimento da informação divulgada pelo presidente. Daiello, no entanto, disse a interlocutores que, caso o presidente solicite, a área da Polícia Federal responsável por cuidar do combate ao trabalho escravo pode mesmo ser transformada em delegacia.

Conforme o Estado mostrou ontem, Temer recebeu na quinta-feira o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, e concordou com algumas alterações na portaria. As mudanças, entretanto, só serão feitas após a votação, na Câmara dos Deputados, da segunda denúncia contra ele por obstrução de Justiça e formação de quadrilha.

Na conversa com Temer, Nogueira fez uma defesa da portaria, apresentou seus argumentos e relatou a conversa que teve durante a semana com Raquel Dodge. A substituta de Rodrigo Janot no comando da PGR, que foi indicada por Temer, fez duras críticas à medida. Ela classificou a portaria como um ‘retrocesso à garantia constitucional de proteção à dignidade da pessoa humana’ e pediu oficialmente dez dias para que o governo se pronuncie e revogue a medida.

Na entrevista ao site, Temer disse ainda que Nogueira apresentou a ele alguns autos de infração de trabalho escravo que o impressionaram. “Um deles, por exemplo, diz que, se você não tiver a saboneteira no lugar certo, significa trabalho escravo.”

De acordo com auxiliares de Temer, o presidente designou que o ministro faça uma avaliação de quais pontos podem ser alterados para que uma decisão seja tomada. A principal preocupação do presidente é acertar eventuais alterações com a bancada ruralista – que tem 230 deputados e 24 senadores. O governo precisa desses votos não só para derrubar a denúncia, mas também para retomar sua agenda no Congresso. O Palácio do Planalto não comentou e afirmou que o Ministério do Trabalho é o responsável por esse tema. O Ministério do Trabalho não se manifestou.

Apoio. Em contraponto às criticas feitas a portaria, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou uma nota ontem apoiando a medida. Para a entidade, a portaria não enfraquece a luta contra o trabalho escravo, “tampouco abranda a legislação que conceitua este crime’. “Pelo contrário, ela representa um importante avanço na definição de um conceito mais claro sobre trabalho escravo. Propicia também maior segurança jurídica, evitando que empresas sejam acusadas injustamente, em função de posições subjetivas e até ideológicas de fiscais, e possibilitando uma aplicação mais eficaz da legislação.”

 

- Exemplo

“Um dos autos de infração, diz que, se você não tiver a saboneteira no lugar certo, significa trabalho escravo.”

Michel Temer

PRESIDENTE DA REPÚBLICA