O Estado de São Paulo, n. 45290, 17/10/2017. Economia, p.B5

 

 

 

 

Regra dificulta pena por trabalho escravo

Portaria do Ministério do Trabalho muda conceitos do Código Penal e modo de fiscalização em empresas; bancada ruralista apoia medidas

Por: Leonencio Nossa / Igor Gadelha

 

Leonencio Nossa

Igor Gadelha / BRASÍLIA

 

O governo baixou norma que dificulta a punição de empresas que submetem trabalhadores a condições degradantes e análogas à escravidão. Portaria publicada ontem no ‘Diário Oficial’ determina que, a partir de agora, só o ministro do Trabalho pode incluir empregadores na Lista Suja do Trabalho Escravo. As empresas que integram essa lista não podem receber empréstimos de bancos públicos por dois anos. A nova regra altera também a forma como se dão as fiscalizações, além de dificultar a comprovação e punição desse tipo de crime.

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne deputados e senadores ruralistas, afirmou, em nota, que a norma vem ao “encontro” de pautas da bancada. A mudança ocorre às vésperas da votação da denúncia contra o presidente Michel Temer na Câmara.

Na maior mudança na área desde a implantação do programa de combate ao trabalho escravo em 1995, a portaria 1.029, assinada pelo ministro Ronaldo Nogueira, do PTB, contraria resolução das Nações Unidas ao prever que o trabalho forçado só será caracterizado sem consentimento do trabalhador. Antes, poderia se considerar que um trabalhador estivesse em regime análogo à escravidão, mesmo que ele aceitasse a proposta de trabalho só por comida.

A nova norma acaba com a autonomia dos fiscais do Ministério do Trabalho. Os grupos de fiscais terão de atuar sempre em companhia da polícia, que deverá fazer um boletim de ocorrência. No interior, sindicatos afirmam que os agentes poli- ciais temem o poder de desmando de políticos e grandes grupos econômicos e, dificilmente, aceitam acompanhar fiscais do trabalho ou registrar BOs.

Pela portaria de Nogueira, as inspeções só serão válidas se o empregador autuado assinar o recebimento do relatório de fiscalização. Também estabelece que a inspeção dependerá da comprovação de existência de segurança armada no local. A portaria modifica os conceitos de trabalho análogo à escravidão definidos no Código Penal.

O artigo 149 do código, por exemplo, prevê penas de dois a oito anos para escravagistas que impõem jornada exaustiva, trabalho forçado, trabalho em condições degradantes e servidão por dívidas. Segundo a portaria, essas quatro situações têm de estar associadas à restrição de liberdade dos empregados.

 

Braços dados. O Ministério Público do Trabalho (MPT) acusou o governo de dar os “braços” às empresas que escravizam. O coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do MPT, Tiago Muniz Cavalcanti, avaliou que a portaria viola tanto a legislação nacional quanto compromissos internacionais firmados pelo Brasil. “O governo está de mãos dadas com quem escravi- za. Não bastasse a não publicação da lista suja, a falta de recursos para as fiscalizações, a demissão do chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), agora o ministério edita uma portaria que afronta a legislação vigente e as convenções da OIT. O MPT tomará as medidas cabíveis.”

Em nota, o Ministério do Trabalho afirmou que a Lista Suja, deve “coexistir” com os “princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório”. Procurada pela reportagem, a assessoria do ministro disse que nada tinha a dizer além da nota.

O deputado oposicionista Alessandro Molon (Rede-RJ) disse que apresentará hoje um projeto de decreto legislativo para sustar a mudança proposta pelo governo. “Temer parece desconhecer qualquer limite. Sepultar o combate ao trabalho escravo em troca de salvação na Câmara é escandaloso, além de brutal com milhares de brasileiros”, afirmou, em nota. A reportagem enviou a declaração do deputado para a assessoria de imprensa do presidente, que preferiu não comentar.

Integrante da bancada ruralista, o líder do PSD na Câmara, deputado Marcos Montes (MG), disse que a portaria era uma “demanda antiga” do setor. “O decreto constrói uma questão mais clara sobre a definição do que é trabalho escravo. A lista não vai mais poder ter excessos.” A FPA destacou em nota que a portaria “diminui” a “subjetividade” de análise de trabalho escravo, mas ressaltou que não participou de discussões com o ministério.

 

Nova norma. Mudança contraria resolução das Nações Unidas sobre trabalho forçado

 

PRESTE ATENÇÃO

1. Segundo a portaria, o trabalho forçado só será caracterizado se não houver consentimento do trabalhador, o que contraria resolução das Nações Unidas.

2. A regra acaba com a autonomia dos fiscais do Ministério do Trabalho. Eles terão de atuar em companhia da polícia, que deverá fazer boletim de ocorrência.

3. Situações de jornada exaustiva, trabalho forçado, trabalho em condições degradantes e servidão por dívidas, previstas no art. 149 do Código Penal, com pena de dois a oito anos de prisão, têm de estar associadas à restrição de liberdade dos empregados, pela nova norma.

 

PARA LEMBRAR

Responsável pela área de fiscalização contra o trabalho escravo, o servidor André Esposito Roston foi exonerado do posto de chefe de divisão na semana passada, logo após concluir uma revisão da chamada “lista suja”. Pessoas próximas ao servidor informam que ele vinha sendo pressionado a não dar publicidade à relação. Segundo essas fontes, a cúpula do Ministério do Trabalho teria trabalhado desde sempre contra a elaboração e publicação. No entanto, Roston e sua equipe conseguiram superar as restrições técnicas e jurídicas apresentadas por elas e a lista foi divulgada em março ano. Isso teria desagradado a parlamentares da base governista. A divulgação de nova versão, concluída dia 6, podia causar desgaste ao governo no momento em que o Planalto trabalha para impedir o prosseguimento da segunda denúncia contra Temer.