Valor econômico, v. 17, n. 4363, 18/10/2017. Brasil, p. A4.

 

 

Ministério Público quer revogação de portaria sobre trabalho escravo

Adriana Aguiar, Ricardo Mendonça, Luciano Máximo e Murillo Camarotto

18/10/2017

 

 

SÃO PAULO E BRASÍLIA  -  A portaria 1.129/2017 do governo Michel Temer publicada na segunda-feira com novos pontos que flexibilizam o combate ao trabalho escravo no Brasil continua despertando fortes críticas, inclusive dentro do governo.

O Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Trabalho (MPT) recomendaram a revogação da decisão do Ministério do Trabalho. O coordenador nacional para erradicação do trabalho escravo do MPT, Tiago Muniz Cavalcanti, afirmou ao Valor que a portaria será ignorada e o órgão seguirá normalmente com suas investigações. Já secretária de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, afirmou que as novas regras comprometem a execução da política de combate a esse tipo de crime e coloca em risco a chamada lista suja, cadastro dos empregadores flagrados.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) declarou que o país deixa de ser referência no combate ao trabalho escravo e vira exemplo negativo. Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos, que reúne 500 empresas que defendem atuação socialmente responsável, fala em “grave retrocesso”.

A recomendação de revogação da portaria pelo MPF e MPT foi encaminhada ontem ao ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que terá prazo de dez dias para dizer se acata ou não a demanda. As instituições argumentam que a portaria apresenta vício de ilegalidade, como efeitos equivocados e tecnicamente falhos sobre elementos caracterizadores do trabalho escravo, “sobretudo condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas”.

Uma das principais falhas apontadas é a alteração irregular das regras para inclusão do empregador na lista suja do trabalho escravo. Pelas medidas anunciadas, a condição análoga à escravidão só será caracterizada se houver privação da liberdade de ir e vir do empregado, limitações que “contrariam frontalmente” o artigo 149 do Código Penal e as convenções internacionais 29 e 105 da OIT.

O artigo 149 do código penal, por exemplo, diz que o trabalho escravo está caracterizado quando há cerceamento dos meios de transporte para o trabalhador ou quando são instalados meios de vigilância ostensiva no local de trabalho. A apreensão e retenção de documentos ou objetos pessoais também configura uma prática análoga à escravidão.

Cavalcanti, do MPT, reitera que se a recomendação não for acatada o órgão tomará medidas judiciais. Na prática, o procurador conta que a portaria será ignorada pelo MPT por ser ilegal e o órgão deverá seguir normalmente com as investigações. Porém, a dificuldade está principalmente com relação à atuação dos auditores fiscais do trabalho que devem seguir as orientações do Ministério do Trabalho, sob pena de sofrerem processos disciplinares.

“Como esses auditores estão de mãos amarradas não vão conseguir seguir com seu trabalho”. Nesse caso, como a portaria impõe a liberação de seguro-desemprego para os trabalhadores resgatados à restrição de liberdade de ir e vir, o MPT a partir de agora, segundo Cavalcanti, terá que entrar com ações judiciais para cada trabalhador resgatado para conseguir o seguro. “Eles dependem desses valores para se livrar do trabalho escravo.”

A portaria pegou o MPT de surpresa, acrescenta o procurador. “Não há diálogo com esse governo. Ele está claramente de mãos dadas com quem explora e escraviza. Nós que estamos do lado da vítima não conseguimos nenhum tipo de diálogo”, completa Cavalcanti.

Indicada por Temer para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), cargo que deverá assumir no mês que vem, a advogada Flávia Piovesan manifestou “profunda preocupação” com as novas regras e também pediu “imediata revogação” da portaria. Atualmente ela é subordinada à ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois. A assessoria de imprensa da pasta não soube dizer se a ministra endossa as críticas de Piovesan. O ministro do Trabalho também não comentou o assunto.

Caio Magri, do Instituto Ethos, diz que a portaria aparece num contexto de corte de recursos públicos para ações de combate ao trabalho escravo e da demissão, há duas semanas, do chefe da divisão de fiscalização para erradicação do trabalho escravo do Ministério do Trabalho, André Esposito Roston. Ele argumenta ainda que a nova portaria prejudica o trabalho técnico de milhares de empresas comprometidas com práticas responsáveis, que se baseiam nas regras vigentes para se certificar que não têm em suas cadeias nenhum tipo de relação com fornecedores envolvidos em situações que configuram trabalho escravo.

“A lista suja funciona como uma bússola, uma ferramenta de análise de risco. Empresas podem ser corresponsabilizadas e penalizadas hoje se tiverem negócio com fornecedores da lista suja, que é um instrumento técnico, mas passa a ser um instrumento político. Como uma empresa séria vai confiar na lista agora, que passa a ser um instrumento político. É uma mudança incompreensível e nada transparente. O Brasil tem dez milhões de empresas e só cerca de cem estão na lista suja”, diz Magri.

O auditor fiscal do trabalho e representante do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, Alex Myller, diz que a entidade se posicionou contra a portaria e solicitou audiência com o ministro do Trabalho para tratar do tema.