O Estado de São Paulo, n.45288, 15/10/2017. Política, p.A8

 

 

 

 

 

Mão limpas não diminui corrupção

25 anos após a operação italiana, esta é a conclusão de Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo, dois personagens principais dessa história

Por: Marcelo Godoy

 

Marcelo Godoy

 

Vinte e cinco anos depois do início da Operação Mãos Limpas, na Itália, a corrupção mudou, mas não diminuiu no país europeu. Assim pensam dois dos principais personagens dessa história, que trabalhavam na força-tarefa dos procuradores de Milão. O grupo iniciou as investigações que provocaram um terremoto político no país – os cinco partidos que dividiam o governo italiano desapareceram na eleição de 1994, pois não tinham mais votos. Hoje, Piercamillo Davigo é o presidente da seção criminal da Corte de Cassação (o supremo tribunal italiano) enquanto seu colega, Gherardo Colombo, que também foi ministro do tribunal, dedica-se a dar palestras a jovens estudantes sobre a importância da luta contra a corrupção. Davigo e Colombo estarão no Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato.

O evento é uma associação entre o Estado e o Centro de Parceria de Políticas Públicas (CDPP) e vai ocorrer no dia 24. Reservado para convidados, o fórum contará também com a presença do juiz federal Sérgio Moro, titular da 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba, e do procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato no Paraná. O painel dos convidados será mediado pela jornalista Eliane Cantanhêde, colunista do Estado, e pela economista Maria Cristina Pinotti, do CDPP. O fórum terá ainda a participação do jornalista João Caminoto, diretor de Jornalismo do Estado, e do economista Affonso Celso Pastore, diretor do CDPP.

 

Visões. Colombo e Davigo têm posições distintas sobre os caminhos que devem ser adotados pela sociedade para combater a corrupção. Enquanto o primeiro considera fundamental a educação como estratégia para enfrentar o fenômeno, o segundo dá ênfase às medidas legais que desestimulem essa prática. Colombo acredita que os processos judiciais fazem muito barulho, mas dão pouco resultado. Para Davigo, não. “Se é conveniente comportar-se bem, aumenta o número dos que assim fazem. Se convém se comportar mal, aumenta o número dos que agem, independentemente da educação.”

Ambos enfrentaram durante mais de uma década as reações do mundo político italiano que modificou leis, reduzindo crime e tornando mais difícil a obtenção de provas, como forma de influir no desenvolvimento das investigações. Leia trechos das entrevistas que os dois concederam ao Estado.

 

 

 

 

ENTREVISTA - Piercamillo Davigo

 

‘Nós descobrimos só uma parte do que existia’

Piercamillo Davigo, presidente da seção criminal da Corte de Cassação da Itália

 

Após 25 anos de Mãos Limpas, qual o balanço da luta contra a corrupção?

Em 1994, por causa do que havia sido descoberto pelas investigações, cinco partidos desapareceram nas eleições. Três deles tinham mais de cem anos. Todavia a mudança foi mais formal que real, no sentido que as pessoas estavam em novas legendas mas, sobretudo nos últimos 15 anos, a principal atividade da política não foi combater a corrupção, mas enfrentar as investigações contra a corrupção. Foram adotadas leis que aboliram ou modificaram crimes, leis que fizeram as provas voltar à estaca zero ou as tornavam inutilizáveis e leis que fizeram com que as pessoas não pudessem ser processadas. Muitas delas caíram por decisão da corte constitucional ou foram interpretadas de modo razoável pelos magistrados. No entanto, muitos processos foram concluídos com sentenças de absolvição não porque os acusados eram inocentes, mas porque as provas colhidas foram anuladas. E o resultado foi a queda de condenações por corrupção. Nos anos 2000, o número de condenações foi um décimo do de 1995. De tal forma, a Itália registra hoje um número de condenações por cem mil habitantes inferior ao da Finlândia, que é o país menos corrupto do mundo.

 

Quer dizer que há corrupção, mas não condenações?

O que falta são as condenações. Porque não é nem mesmo possível descobrir os corruptos, e quando são descobertos é muito mais difícil condená-los. Esse é o problema.

 

O senhor diz que se deve pôr os corruptos na cadeia porque cometem o crime em série.

Se o investigado por corrupção decide colaborar, torna-se inidôneo para cometer esse crime, pois ninguém mais pegará dinheiro com ele e ninguém também dará dinheiro para quem delata. O problema são aqueles que mantêm a capacidade de chantagem porque se mantiveram em silêncio. E estão em condição de chantagear os cúmplices que não foram descobertos. Assim, é necessário ter a custódia cautelar e o cumprimento da pena na prisão porque os priva da possibilidade de chantagear.

 

Arnaldo Forlani ( primeiro-ministro italiano entre 1980 e 1981 e secretário da Democracia Cristã), que foi condenado por corrupção, mas cumpriu a pena prestando serviço social...

Não falo em nomes. O que posso dizer é que na Itália as penas com menos de 3 anos podem ser cumpridas por meio da prestação de serviço social. É uma medida feita para reintegrar na sociedade pessoas provenientes de setores marginalizados da sociedade e não para reintegrar quem fosse primeiro-ministro.

 

No Brasil, o ex-presidente da Câmara e ex-ministros estão presos. A Lava Jato deu frutos maiores do que Mãos Limpas?

Não conheço a situação brasileira em detalhe, portanto, não posso fazer um juízo.

 

Mas quando se pensa que importantes figuras políticas...

Posso apenas dizer que a situação italiana é absolutamente insatisfatória. Para mim, aquilo que nós descobrimos é somente uma parte do que existia. Muitos conseguiram se manter em silêncio. Em um certo momento da minha vida profissional me tornei uma espécie de rei Midas. Porque quando processava alguém, ainda mais se o condenado permanecia em silêncio, ele iniciava uma fulgurante carreira política.

 

É verdade que os políticos italianos continuam roubando. O que mudou foi que eles não se envergonham mais?

Digo que os políticos que roubam – não são todos que o fazem – pararam de se envergonhar. No passado, quando os prendíamos, se envergonhavam, agora não. Penso em um deles condenado recentemente. Quando se soube o que ele havia feito com o dinheiro, disse: “É dinheiro meu, faço com ele o que quero”. Não. É dinheiro do contribuinte.

 

Aprenderam a roubar melhor?

Não é melhor. É menos organizado do que antes. Isso não significa que se rouba menos.

 

Nos últimos 15 anos, a principal atividade da política ( na Itália) não foi combater a corrupção, mas enfrentar as investigações contra a corrupção.”

 

 

Aquilo que nós descobrimos ( na Operação Mãos Limpas) é somente uma parte do que existia. Muitos conseguiram se manter em silêncio.”

 

 

Quando processava alguém, ainda mais se o condenado permanecia em silêncio, ele iniciava uma fulgurante carreira política.”

 

 

 

 

 

ENTREVISTA - Gherardo Colombo

 

‘Não há na Itália o sistema da delação premida’

Gherardo Colombo, ex-magistrado italiano

 

Vinte e cinco anos depois da Operação Mãos Limpas, um condenado por corrupção vai para a cadeia na Itália?

Muitos foram os condenados. Alguns foram para a cadeia. Mas muitos empresários – devo dizer que não sei se o nosso sistema corresponde ao de vocês – fizeram acordos e conseguiram a suspensão condicional da pena. E portanto não foram para a cadeia.

 

Quanto caiu o número das condenações na Itália?

É difícil dizer. Aqui em Milão, posso fazer um cálculo aproximado desse fenômeno. Nós pedimos que fossem julgadas cerca de 3,7 mil pessoas. Dessas, foram absolvidos 20%, cerca de 750. Cerca de 40% dos casos prescreveram, ou seja, cerca de 1.500. Das outras 1,5 mil, cerca de mil fizeram algum acordo. Foram condenados cerca de 700 pessoas, sendo que alguns ainda puderam gozar da suspensão condicional da pena.

 

E quantos desses foram condenados a até 3 anos e, portanto, puderam fazer serviços sociais em vez de ir para a cadeia?

Eu creio que uma grande parte, a maioria. Além disso, na Itália, existe a possibilidade para pessoas particularmente idosas de cumprir a pena em prisão domiciliar. Para o cárcere foram poucas pessoas.

 

O senhor acredita que um acusado de corrupção deve ser mantido na cadeia preventivamente?

Bem, pelo que compreendo, e não conheço completamente o sistema processual brasileiro... porém, chegam notícia. O sistema italiano prevê que a custódia cautelar seja possível somente para evitar o perigo de fuga, o perigo de destruição de provas ou o perigo de reiteração do crime do mesmo tipo. Ora, não existe na Itália um sistema para a corrupção similar ao vosso da delação premiada. Não existe. A delação premiada é um termo que não se pode usar. Nós falamos de colaborador de Justiça no campo da Máfia e do terrorismo. Não se pode pôr na cadeia uma pessoa para fazê-la falar. Ok? Em um sistema ( da delação) no qual não basta que as pessoas sejam corretas, é sempre necessário, para a sentença, para a condenação, que existam também comprovações do que foi dito, como a prova da passagem do dinheiro por meio financeiro e assim por diante. E isso vale também para a custódia cautelar. Em relação às pessoas contra as quais foram aplicadas a custódia cautelar na Itália por parte dos magistrados, há uma outra particularidade que, para mim, é importante, e torna impossível fazer paralelos entre Mãos Limpas e Lava Jato. Existe uma diferença notável sobre o perfil do controle dos magistrados. Na Itália, existe o Ministério Público que faz a investigação. Há o juiz da investigação preliminar que controla a atividade do Ministério Público e que emite todos os procedimentos que restringem em qualquer medida a liberdade, como a custódia cautelar na cadeia, as interceptações telefônicas e por aí vai. Quando a investigação acaba, é um outro juiz, um juiz para a audiência preliminar, que decide se vai mandar a julgamento o acusado ou mesmo se recusa a abertura do processo. Mas não é ele que condena porque a condenação só pode ser emitida por um tribunal, que é um juízo diferente e, para os casos de corrupção, é o juízo de um colegiado, composto por três pessoas.

 

É por isso que alguns advogados brasileiros dizem que aqui no Brasil o juiz tem um papel de super-homem no processo?

Notei que o juiz (Sérgio Moro) que fez a investigação contra Lula é o mesmo da sentença e isso me deixou um pouco surpreso porque aqui na Itália isso não poderia acontecer.

 

A política italiana hoje é mais limpa do que antes?

Eu penso que o nível de corrupção na Itália seja mais ou menos o mesmo. Pessoas corruptas são encontradas em toda parte. Na época, a corrupção era muito ligada ao financiamento ilícito dos partidos políticos. Hoje não é mais assim.

 

“Nós falamos de colaborador de Justiça no campo da Máfia e do terrorismo. Não se pode pôr na cadeia uma pessoa para fazê-la falar. Ok?”

 

 

Notei que o juiz que fez a investigação contra Lula é o mesmo da sentença e isso me deixou um pouco surpreso porque aqui na Itália isso não poderia acontecer.”

 

 

Penso que o nível de corrupção na Itália seja mais ou menos o mesmo. As pessoas corruptas são encontrados em toda parte.”