Valor econômico, v. 17, n. 4366, 23/10/2017. Brasil, p. A2.

 

 

Governo deve rever caracterização do trabalho escravo, afirma Temer

Ricardo Mendonça

23/10/2017

 

 

Embora não admita revogar a polêmica portaria que enfraquece o combate ao trabalho escravo no país, o governo federal deverá modificá-la naquele que é considerado o aspecto mais importante para as entidades, órgãos de fiscalização, organismos internacionais e especialistas envolvidos com o assunto: a conceituação do delito.

No sábado, durante almoço no Refúgio Ecológico Caiman, Mato Grosso do Sul, o presidente Michel Temer disse em rápida conversa com o Valor que o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, negocia modificações no texto da portaria com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Temer já havia dito na semana passada que eles estavam tratando a respeito da criação de uma delegacia específica sobre esse tipo de violação. Agora, afirmou que trabalham na caracterização.

"Ele [Nogueira] já fez duas conversas com ela [Dodge] para verificar quais as eventuais modificações que devam ser feitas. Não para revogar a portaria, mas quais as modificações de modo a caracterizar exatamente o que é o trabalho escravo", disse o presidente. "Vamos fazer isso com muita tranquilidade. São coisas que ajustam os vários setores. Acho que vai dar certo".

Antes de fazer essas afirmações, Temer ressaltou que a responsabilidade pela portaria não foi dele. "Na verdade, não foi ato meu, do presidente. Mas uma portaria do ministro [do Trabalho]", disse. O pemedebista almoçou um churrasco no hotel fazenda após, em evento oficial, assinar a criação de uma norma que permite a conversão de multas do Ibama em prestação de serviços ambientais por parte de empresas infratoras.

A portaria sobre trabalho escravo publicada na semana passada restringe o conceito que se aplica há anos sobre o tema. Pelo novo texto, esse tipo de violação só se caracterizaria se houver a constatação explícita de cerceamento da liberdade de ir e vir de trabalhadores. A combinação de condições degradantes de trabalho, alojamento precário, falta de pagamento e ausência de condições mínimas de higiene, por exemplo, deixa de configurar situação de trabalho análogo à escravidão.

Conforme relatórios de fiscalização publicados desde 1995, quando o sistema de combate ao trabalho escravo começou a vigorar, casos com cerceamento explícito de liberdade são mais raros. A experiência mostra que muitas vezes o trabalhador não abandona o ambiente indigno de trabalho porque recebeu promessa de pagamentos que nunca chegam, porque está em área rural sem transporte para voltar à cidade ou ao Estado de origem ou mesmo por ameaças subjetivas.

Outro problema apontado na restrição do conceito é o conflito do texto da portaria com a caracterização vigente no Código Penal. Logo após a publicação da portaria, o próprio chefe do setor de fiscalização do Ministério do Trabalho recomendou aos subordinados que ignorassem as novas regras e seguissem conforme o entendimento tradicional.

Minutos após o almoço no Refúgio Caiman, uma alta autoridade que acompanhava Temer confirmou ao Valor que o governo, de fato, decidiu retirar do texto da portaria os aspectos que condicionam a caracterização de trabalho escravo à constatação de cerceamento de liberdade. Essa autoridade reconheceu que o governo errou ao publicar a portaria. Por não estar diretamente ligada à discussão, porém, pediu para não ter o nome identificado.

Outros dispositivos da portaria severamente criticados são os que tratam da inclusão de empregadores na chamada Lista Suja, o cadastro de infratores, e da publicação periódica dessa relação.

Pelo novo texto, uma empresa só pode entrar no cadastro após determinação do ministro do Trabalho. Como a decisão passa a ser discricionária, abre margem para que um empregador deixe de ser listado mesmo quando as possibilidades de recurso na esfera administrativa já estiverem esgotadas. A portaria diz também que a publicação da Lista Suja só pode ocorrer mediante determinação expressa do ministro. Há anos, a publicação é feita semestralmente, sem necessidade de ordem ou risco de veto ou atraso por parte do ministro.