Correio braziliense, n. 19920, 06/12/2017. Opinião, p. 13

 

Lutas fratricidas, delações e acordos de leniência

Joaquim Falcão 

06/12/2017

 

 

Muitos pensam que o objetivo das investigações e das ações judiciais contra a corrupção é apenas restaurar a moralidade da administração pública. Punir e prender culpados. Recuperar o dinheiro do Tesouro. É isso mesmo. Mas existem outros objetivos também. Um deles é moralizar os negócios privados, e assim estimular para que os investimentos empresariais tenham mais segurança jurídica e  possam competir com mais decência.

Este objetivo é muito bem explicado em um dos mais importantes livros sobre nosso atual processo civilizatório: A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville. Enorme pensador francês que viajou por todo os Estados Unidos para entender o sucesso e as dificuldades norte-americanas. Isto foi em 1835. Tocqueville faz, então, observação decisiva em determinada passagem.

Quando uma empresa americana vem a falir, ou seja, vem a morrer, por qualquer motivo, o importante para o interesse público é logo enterrá-la e ressuscitá-la. O importante é que o capital paralisado pela falência não fique improdutivo e volte logo a circular. Aprenda a lição, contabilize as perdas e corra outra vez para novos riscos. Dar continuidade à produção de progresso e de riqueza. Esta é a essência do espírito empreendedor construtivo.

A ousadia do risco é o motor da economia, dentro das regras, boa-fé e da ética do jogo. Foi justamente pela percepção de que os processos de falência no Brasil não acabavam jamais, o que prejudicava o interesse público, que mudamos a lei. Temos agora também a lei de recuperação judicial. Muito mais rápida ao responsabilizar empresas em dificuldades, distribuir penalidades entre os que correram o risco e fracassaram. E possibilitar à empresa respirar de novo.

Delações premiadas e acordos de leniência são novos institutos jurídicos do mesmo tipo “recuperação de empresas”. Sem serem da via empresarial judicial. Pela via administrativa e penal. Visam responsabilizar, punir e controlar comportamentos públicos e privados, passados e futuros, evitando a improbidade administrativa, a corrupção, com a rapidez de que um país com capital de investimento escasso necessita.

Aqui reside o problema. Esta volta ao mercado é muito complexa. As leis são vagas, ainda por serem aperfeiçoadas. Jurisprudência e experiência suficientes não temos. Pior. Os ilícitos cometidos ofendem vários setores da administração pública. Envolvem competências múltiplas de diversos órgãos do estado – AGU, CGU, TCU, MP, Polícia Federal e vários outros — têm chefias múltiplas, colegiados, presidências, relatores, entre os quais é difícil encontrar consensos. Com quem negociar?

Mais ainda. Muita vez, esses órgãos estão subordinados a políticos ou executivos públicos envolvidos em processos de corrupção que não querem avançar delações e acordos. Interesses pessoais em jogo. Não se pode ser negociador e interessado ao mesmo tempo.

A burocracia do Estado, que é de carreira, corre o risco de ser submetida à burocracia do governo, que é a burocracia dos cargos de confiança. Setores dessas burocracias estão ligados a alianças de poder, seja do Executivo , seja do Legislativo, alvo das investigações.

Ocorrem, como bem colocou Raquel Dodge, lutas fratricidas, internas e externas. Paralisantes. Geradoras de instabilidade e insegurança. Acresçam ainda dois outros fatores capazes de afetar o andamento das investigações, delações, acordos e punições.

Primeiro a judicialização dos acordos e delações, o que chama juízes e tribunais para intervir. E rever, acrescer, discordar dos acordos feitos pela administração pública. É quase  uma armadilha protelatória. Corre-se o risco de um perigoso ativismo judicial que  avoca para si a responsável não somente pela formulação de política pública, como de sua própria execução. Não raramente, ultrapassando os limites constitucionais.

Segundo, a multiplicidade de órgãos e negociadores públicos e a interferência do judiciário criam um ambiente de instabilidade judicial. Mesmo feita a delação e assinado o acordo, a empresa não tem segurança para voltar ao mercado.

Corre-se o risco de órgãos disputarem, discordarem,  atrasarem  e paralisarem entre si. A quem interessa esta paralisação? Ou, às vezes, até o contrário. É preciso que haja negociadores do governo que, respeitando as competências diferentes, falem uma voz só, um critério só, em nome de tantos.

A Lava-Jato, ou melhor, a atitude “lava-jato” que se espalha por mais de 40 investigações neste país, busca não apenas a moralidade pública, mas um novo ambiente de mercado, com segurança jurídica, eficiência empresarial e competição somatória. E não predatória.

(...)

» JOAQUIM FALCÃO

Professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro