O globo, n.30841 , 14/01/2018. PAÍS, p.4

A FACE OCULTA DOS MORTOS NA REBELIÃO DA CADEIA DE GOIÁS

VINICIUS SASSINE

 

 

Processos judiciais de cinco dos nove presos revelam ausência de ligação com facções criminosas

 

Dentro de um ônibus em Goiânia, numa linha sempre apinhada de gente, David simulou ter uma faca sob a camiseta — era um maço de cigarros. Acompanhado de um amigo, o garoto de 19 anos abordou um passageiro, ameaçou cortá-lo e roubou um celular de R$ 900. Os objetos eram convertidos em crack. Naquele dia, 24 de agosto de 2017, David foi pego pela polícia. Preso em flagrante.

A denúncia do Ministério Público foi protocolada dez dias depois. A prisão preventiva, decretada no mesmo mês. A Justiça condenou David a cinco anos e quatro meses de prisão, em outubro. Em 20 de novembro, quando, na prática, já cumpria pena num centro de detenção de prisão provisória, ele ingressou na Colônia Agroindustrial do Complexo Penal de Aparecida de Goiânia (GO).

O presídio é uma unidade de regime semiaberto onde uma rebelião que deixou nove mortos no primeiro dia do ano voltou a expor o caos — e a face medieval — das prisões do país.

O governo de Goiás atribuiu a rebelião a uma briga entre facções criminosas. Nenhum dos documentos que aparecem em processos de cinco dos nove mortos — feitos pelo Ministério Público e pela Justiça — registra, no entanto, o pertencimento desses presos a alguma facção. Os cinco casos guardam semelhanças e lançam luz sobre quem morre na rebelião de um presídio brasileiro.

Isso indicaria que, se houve uma aproximação com facções, ocorreu dentro da cadeia. A possibilidade é comum na realidade prisional brasileira, quando, muitas vezes, detentos precisam escolher de qual lado ficar porque as celas são separadas por grupos criminosos.

O GLOBO consultou na 1ª e na 2ª Varas de Execução Penal (VEPs), em Goiânia, os processos referentes a cinco dos nove presos mortos na rebelião. Dois foram decapitados, e os corpos da maioria deles foram carbonizados. São esses processos que levaram os detentos a estarem dentro da Colônia Agroindustrial na tarde do dia 1º.

Dois processos não foram localizados em razão de uma inspeção do Conselho Nacional de Justiça nas VEPs. A identificação da oitava vítima só ocorreu depois de a reportagem consultar os autos nas varas. O nono preso não havia sido identificado até o fechamento desta edição.

David de Oliveira Borges, o do maço de cigarros, foi um dos nove detentos mortos na rebelião. A causa da morte de David: carbonização, às 16h40m de 1º de janeiro de 2018, dentro da Colônia Agroindustrial, como consta da certidão de óbito. Ele morreu queimado dentro de um prédio administrado pelo Estado.

— Ele morava comigo e danou a fazer trem errado no mundo por causa do crack. O crack, ninguém segura. Eu tirei CPF, identidade, carteira de trabalho para o meu filho, mas ele perdeu tudo — diz João Bezerra da Silva, 67, pai de David, morador de um conjunto habitacional pobre em Senador Canedo, cidade a 20 quilômetros de Goiânia.

Acusações de roubo, com armas branca ou de fogo, levaram David; Ravel Nery de Amorim, de 20 anos; Pablo Henrique Alves Silva, 21; Aryel Alves Martins Pena, 23; e Fernando Sousa Pimenta, 37, para a prisão. O patrimônio roubado era de pequeno porte, conforme as denúncias do MP: celulares; montantes de R$ 40 a R$ 2 mil em espécie; camisa do Goiás Esporte Clube; correntes de prata; anéis de ouro; bonés e uma bermuda. Em nenhum dos casos houve recurso à 2ª instância.

Os condenados haviam ingressado na Colônia há pouco tempo, alguns há menos de dois meses, seja a partir de uma progressão de pena ou, principalmente, com cumprimento de prisão já no regime semiaberto. A maior sentença, dez anos e seis meses de prisão em regime fechado, foi aplicada a Aryel, condenado por roubo à mão armada e por ameaça a pai e filho dentro de casa, inclusive com arma apontada para a criança. Ele conseguiu progredir para o semiaberto.

A mãe de Fernando, Maria de Fátima Sousa, 53, enterrou o filho na terça, dia 9.

— O Fernando era mototaxista, transportava um passageiro quando pegaram os pertences da bolsa de uma mulher. O valor dos objetos ali equivalia a dois mil, três mil reais. No presídio, não tinha rixa com ninguém. Eu o visitava todo domingo — diz Maria de Fátima.

Os dois detentos decapitados estavam na ala B do presídio, destinada a presos doentes. Fernando caiu da moto na fuga do roubo e teve complicações após uma cirurgia na perna. A mãe conta como ficou sabendo da morte do filho.

— No dia 2, estava na porta do presídio. Uma mulher mostrou a foto de um preso segurando a cabeça decepada de outro. Era a cabeça do meu filho — disse Maria de Fátima, que pensa em processar o Estado.

O advogado de Fernando, contratado pela mãe, chegou a pedir, em 15 de dezembro, a concessão do indulto de Natal ao detento, com base no decreto de 2013, e não no decreto do presidente Michel Temer de 2017, derrubado pelo STF por ser considerado permissivo demais a presos por corrupção.

Fernando entrou na Colônia em 13 de novembro. Uma semana depois, chegou David, que poderia ir para o regime aberto em julho. João Bezerra, pai de David e de 11 filhos, analfabeto e com renda de um salário mínimo, recebeu ligação no dia da prisão:

— O delegado falou para arrumar um advogado. Eu disse que não tinha como sustentar ele aqui. O David chegou a me pedir dinheiro, dizendo que tinha dívida de droga no presídio. O maior tempo que ele ficou numa casa de recuperação foram dois meses. Voltou gordo e forte. Não durou uma semana.