O globo, n.30752 , 17/10/2017. ECONOMIA, p.15

BRECHA AO TRABALHO ESCRAVO

RENATA MARIZ

CÁSSIA ALMEIDA

 

 

Para agradar a ruralistas, governo edita portaria que dificulta fiscalização e punição de patrões

A bancada ruralista da Câmara, que sozinha pode barrar, com seus mais de 200 votos, a denúncia contra o presidente Michel Temer, foi atendida ontem em um pleito antigo. O governo editou novas regras que, na prática, dificultam a fiscalização e punição de empregadores flagrados submetendo trabalhadores à condição análoga à de escravo. Em portaria publicada no Diário Oficial da União, o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, transferiu para ele — ou para quem estiver como titular da pasta — a competência de incluir nomes na chamada lista suja, que reúne os empregadores flagrados por trabalho escravo, após procedimento administrativo que prevê até dois recursos por parte dos autuados.

A divulgação da lista também passa a depender de “determinação expressa do Ministro do Trabalho”, conforme a portaria. A inclusão de nomes e a publicidade dada pelo governo ao cadastro eram, anteriormente, de responsabilidade da equipe técnica da pasta.

A Comissão Pastoral da Terra e especialistas criticaram duramente as novas regras. A portaria trouxe ainda novos conceitos do que é o trabalho análogo à escravidão. Antes, bastava haver jornada excessiva ou condição degradante de trabalho. Agora, essas duas situações, por exemplo, precisam vir acompanhadas de restrição de liberdade de locomoção do trabalhador para serem caracterizadas como trabalho análogo à escravidão.

De acordo com o Código Penal, o cerceamento do direito de ir e vir só era critério obrigatório no caso de trabalho forçado e servidão por dívidas, outras condições que caracterizam o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo.

Uma série de procedimentos criados na nova portaria retira a autonomia dos auditores fiscais nas inspeções. Até então, eles tinham competência para notificar a suspeita de trabalho escravo, resgatar pessoas nessa condição e iniciar o processo administrativo que pode culminar nas penalidades previstas na legislação, como multas, obrigação de pagar direitos trabalhistas e ser incluído na lista suja.

De acordo com a portaria, eles terão de atuar na companhia de um policial, que precisará lavrar um boletim de ocorrência do auto de flagrante. Sem esse documento, a fiscalização será considerada inválida, e o empregador ficará isento das eventuais penalidades.

As novas regras excluíram o Ministério Público do Trabalho (MPT) das tratativas feitas pelo governo com empregadores interessados em firmar Termo de Ajuste de Conduta (TAC) ou acordo judicial. Agora, cabe ao Ministério do Trabalho, em parceria com a Advocacia-Geral da União (AGU), fechar esses termos.

Foram revogadas também, pela nova portaria, algumas obrigações do empregador que fez TAC ou acordo, como ficar na lista suja por pelo menos um ano e pagar todos os débitos trabalhistas e indenizações por dano moral.

 

ORIENTAÇÃO DE MANTER FISCALIZAÇÃO

A portaria não foi elaborada na Secretaria de Inspeção do Trabalho do ministério, departamento responsável pelas operações contra trabalho escravo. Memorando do secretário substituto João Paulo Ferreira Machado, distribuído aos auditores fiscais, informa que a medida foi preparada na Casa Civil em agosto do ano passado e só passou pelo gabinete do ministro do Trabalho e pela consultoria jurídica. O secretário considerou que a portaria fere a Constituição e orientou os fiscais a não mudarem as práticas de fiscalização. “Foram detectados vícios técnicos e jurídicos na conceituação e regulação do tema que pretende disciplinar, bem como aspectos que atentam contra normativos superiores à portaria, tais como a Constituição da República Federativa do Brasil, a Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Código Penal”, diz o memorando.

A portaria do governo recebeu uma chuva de críticas de especialistas e organizações que combatem o trabalho escravo no Brasil. O coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, Tiago Muniz Cavalcanti, afirmou que, juntamente com Ministério Público Federal, vai divulgar recomendação para que a pasta revogue a medida. Se não tiver êxito, estudam medidas judiciais para barrar a medida, que ele considera inconstitucional:

— O governo está de mãos dadas com quem escraviza. Não bastassem a não publicação da lista suja, a falta de recursos para as fiscalizações e a demissão do chefe do departamento de combate ao trabalho escravo, agora o ministério edita uma portaria que afronta a legislação vigente e as convenções da OIT. O Ministério Público do Trabalho tomará as medidas cabíveis.

Cavalcanti afirma que a “leitura é muito óbvia”, de que a portaria vem a atender à demanda da bancada ruralista no momento em que Temer precisa de votos no Congresso para barrar a segunda denúncia da Procuradoria-Geral da República contra ele:

— É uma demanda que já existia da bancada ruralista, que se aproveita da denúncia contra o presidente.

A Comissão Pastoral da Terra também criticou a portaria. Segundo a instituição, a norma “acaba” com o livre exercício do Estado na fiscalização e punição desse tipo de crime. “Óbvio, esse engessamento tem um endereço certo: inviabilizar a inclusão de eventual escravagista na lista suja.”

Em nota, o Ministério do Trabalho afirmou que a portaria “aprimora e dá segurança jurídica à atuação do Estado Brasileiro, ao dispor sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas às de escravo”. Segundo a pasta, “o cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores à condição análoga à de escravo é um valioso instrumento de coerção estatal e deve coexistir com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório”.

 

O QUE MUDA
 

JORNADA EXAUSTIVA E CONDIÇÕES DEGRADANTES

Antes: Código Penal prevê que jornada exaustiva e condições degradantes são trabalho escravo.

Agora: A portaria retirou das características da escravidão essas duas situações. Se o fiscal flagrar essas condições, só poderá autuar se houver restrição de liberdade do trabalhador.

CONDIÇÕES PARA SER TRABALHO ESCRAVO

Antes: Pelo Código Penal, a condição análoga à escravidão pode ser caracterizada por servidão por dívida, trabalho forçado, jornada exaustiva ou condição degradante.

Agora: A portaria estabeleceu que escravidão é quando há uso de coação, cerceamento do uso de meios de transporte, isolamento geográfico, segurança armada para reter o trabalhador e confisco de documentos pessoais.

PEÇAS OBRIGATÓRIAS NO RELATÓRIO DE FISCALIZAÇÃO

Antes: Basta relatório detalhado e coerente sobre as irregularidades, porque o auto de infração é sujeito a dois recursos administrativos.

Agora: Exigência de boletim de ocorrência lavrado por policial que tenha participado do flagrante, envio de ofício à Polícia Federal e fotos de todas as irregularidades.

PODER DO MINISTRO

Antes: Somente técnicos podem incluir empregadores na lista suja e divulgá-la.

Agora: Só o ministro do Trabalho terá o poder de divulgar a lista e incluir empregadores.

ACORDOS

Antes: Ministério do Trabalho é obrigado a encaminhar ao Ministério Público do Trabalho (MPT) acordos com empregadores flagrados para firmar acordos judiciais ou extrajudiciais.

Agora: O Ministério do Trabalho vai negociar só com a Advocacia-Geral da União, sem informar ao MPT.

PERDÃO DE DÍVIDAS

Antes: Empregador flagrado tinha de ficar na lista suja por, pelo menos, um ano e pagar débitos trabalhistas e indenizações.

Agora: Foram revogadas as obrigações do empregador.