Valor econômico, v. 17, n. 4376, 07/11/2017. Brasil, p. A2.

 

 

Estado forte e economia de mercado

Antonio Delfim Netto

07/11/2017

 

 

Desde a sua origem, o estudo da economia teve por objeto tentar entender como funciona o mundo e encontrar meios para torná-lo mais eficiente na satisfação das necessidades materiais da sociedade. Trata-se de encontrar uma organização econômica (porosamente ligada a toda atividade social) que satisfaça a pelo menos duas condições: 1) permita ampla liberdade individual; e 2) proporcione crescente igualdade de oportunidade sem restrição de qualquer natureza (local do nascimento, étnica, religiosa etc.). A produção "eficiente" de bens e serviços por um grupo de empreendedores é um problema técnico, mas a alocação do produzido entre os fatores que a geraram (trabalhador + empreendedor que detém o capital) é um problema largamente decidido por quem tem o poder político. A produção "eficiente" e a sua distribuição "sentida" como relativamente "justa" são ingredientes fundamentais inseparáveis na construção da sociedade civilizada.

Se não levarmos 2018 a sério, poderemos ter nova década perdida

Esse entendimento não recebe como "natural" a divisão social a que nos levou a seleção quase biológica da "eficiência" produtiva no sistema que chamamos de "capitalismo", fundado na crescente separação entre os empreendedores, que detém os bens de produção (trabalho cristalizado em instrumentos que multiplicam a produtividade do trabalho "vivo") - os "capitalistas" -, e os que só têm a sua própria força de trabalho e a vendem em troca de salário - os trabalhadores. A história mostra que o aumento da eficiência do trabalho só foi possível graças à criação de um "direito de propriedade" mais amplo do que se poderia considerar "natural", isto é, a apropriação e acumulação por cada um do que pode obter do intercurso do seu trabalho com a natureza, limitado à necessidade da sua subsistência. É esse direito de propriedade sustentado pelo Estado que garante a coordenação entre os bens e serviços desejados pela sociedade (a demanda) e o que uma parte dela, os capitalistas-empreendedores, vão atender (a oferta) seguindo os sinais estabelecidos pelos preços nos mercados, uma instituição espontânea nascida das relações sociais. Eles foram sendo sofisticados pelo próprio conhecimento de como funciona a economia em resposta aos estímulos que recebem seus agentes.

A efetividade do processo depende do poder de um Estado forte constitucionalmente contido, capaz de regular o funcionamento dos "mercados", particularmente, o financeiro. Esse é um ponto muito importante para entender as visões ideológicas que dividem a sociedade. A divisão do produzido entre o trabalho e o capital é, como já dissemos acima, uma questão decidida por quem detém o poder político. Desde o início do século XIX, os fatos exigiram uma organização dos trabalhadores através de sindicatos, de partidos políticos e do sufrágio universal (o eleitor é qualquer cidadão, não apenas os que detém renda ou patrimônio). Para quê? Para estabelecer a "paridade" de poder entre o "trabalho" e o "capital" numa dimensão que transcende os "mercados". Nesses o "capitalista" tem tantos votos quanto o capital que acumulou. Na urna - no sufrágio universal -, parte essencial do regime democrático -, todos têm apenas um voto, o que entrega o poder político à maioria dos que não empreendem e não possuem capital. Por que, então, a "maioria" não destruiu o poder do capitalista-empreendedor? Porque nas sociedades mais bem-sucedidas no caminho civilizatório constatou-se, empiricamente, que a despeito das diferenças desagradáveis construídas pelo "capitalismo" (um aumento da desigualdade), ele pode ser utilizado num jogo que beneficia os dois lados (um "ganha-ganha") capaz de encontrar para a maioria uma distribuição aceitável do produzido e deixar nas mãos do empreendedor-capitalista os recursos para gerar o crescimento econômico, a condição necessária, ainda que não suficiente, para a construção da sociedade civilizada. Até agora não se encontrou melhor alternativa.

A confirmação desse fato são as experiências malsucedidas que chegaram ao poder para produzir liberdade, igualdade e eficiência e terminaram no mais absoluto autoritarismo na tentativa de construir o "homem novo". Os fracassos se verificaram desde as pequenas experiências do socialismo "utópico" que povoaram o século XIX, até a que nasceu em 1917 sob o entusiasmo da intelectualidade mundial e terminou tragicamente, depois de ter "educado" vários milhões de "homens renitentes"... Isso é uma lição para o Brasil, um país que empobreceu nos últimos 30 anos com relação à economia mundial e ainda mais com relação aos outros emergentes, mas não é um fracasso. Já viveu todas as experiências políticas: foi colônia, império, ditadura e agora somos uma democracia, um Estado de direitos sem adjetivos. Hoje sabemos que, com todos os seus problemas, o sistema democrático é o único que permite a correção de rumos pela substituição pacífica do poder incumbente através de eleição livre em tempo certo. Pois bem, se não levarmos a sério a eleição de 2018 e continuarmos a namorar a utopia "populista", estaremos nos preparando para mais uma década (...)

 

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

 

E-mail: ideias.consult@uol.com.br