Título: Leal à própria biografia
Autor: Amado, Guilherme
Fonte: Correio Braziliense, 12/03/2012, Política, p. 5
Presa ao lado da presidente Dilma durante o regime militar e torturada com a filha de apenas 1 ano de idade, Eleonora Menicucci provoca nos conservadores o mesmo furor que as feministas causaram nos idos de 68
A escolha da socióloga Eleonora Menicucci para a Secretaria de Políticas para as Mulheres, há um mês, teve o mesmo efeito de um sutiã queimado no final da década de 60. Pelo menos para deputados evangélicos, militares da reserva e bispos linha-dura, alvoroçados com a nomeação de uma mulher cuja biografia se aproxima de muitos temas ligados ao ministério. Colega de cela da presidente Dilma Rousseff durante a ditadura, quando ficou presa por quase quatro anos, Eleonora foi torturada na sede do DOI-Codi e viu sua filha, Maria, de 1 ano e 10 meses, sofrer os mesmos suplícios. Se foi essa experiência que a despertou para o feminismo, a vida traria outras que insistiram em jogá-la na trincheira pela igualdade de gênero. E isso vai bem além do ato em praça pública que escandalizou o mundo no final dos anos 60.
Em entrevista ao Correio, a ministra de 67 anos pontua a agenda que pretende seguir na pasta. A legalização do aborto, estudada e defendida ao longo de sua carreira acadêmica, deve ficar de fora dessa pauta, devido à promessa da presidente Dilma Rousseff durante a campanha de 2010: esse é um assunto de Congresso, não de governo. Mas não foi só isso que motivou o bombardeio contra sua posse.
Eleonora atuou na luta armada contra a ditadura, participando de assaltos a bancos e supermercados. Foi presa em dia 11 de julho de 1971, por 18 homens do Exército armados de metralhadora. Ela tinha apenas 22 anos e foi levada com a filha para a temida Rua Tutoia, 921, sede da Operação Bandeirantes (Oban), um dos principais centros de tortura do país. "A minha tortura e da minha filha me mostraram a dimensão do terror instalado em nosso país e paradoxalmente nossa impotência frente a ele. Aqui me transformei em feminista", escreveu a ministra em 1996.
Orgulho
Outro ingrediente do preconceito teve a ver com sua orientação sexual. A ministra já afirmou, em entrevista, manter relações sexuais com homens e mulheres. "Não é porque eu tenho mais de 60 anos que não namoro. Me relaciono com homens e mulheres e tenho orgulho de minha filha, que é gay", contou em uma entrevista à revista TPM. Mas os ataques fizeram com que Eleonora decidisse não falar mais da vida pessoal enquanto for ministra.
Deve ser difícil para quem, segundo amigas, é tão extrovertida. Entre feministas, Eleonora — ou Leo, como é chamada — , é um nome de peso. A pesquisadora Sonia Corrêa, fundadora da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), garante saber o que estava fazendo quando convidou a amiga para batizar sua filha. "A Leo é superextrorvertida, leal e muito comprometida com a sua biografia, o que é uma coisa rara hoje em dia, quando tantos renegam suas próprias histórias", derrete-se Sonia. Além de Maria, hoje com 42 anos, Eleonora deu à luz Gustavo, de 37. Tem três netos: Stella, João e Gregório. Há quem diga que Eleonora abraçou a temática das mulheres bem antes da prisão. "Ela faz parte da segunda onda do feminismo, que no Brasil coincidiu com a ditadura e o pós-ditadura. Mas acho que quem é desse time é feminista de nascença" explica a feminista Ângela Freitas, mineira como a ministra, de quem é amiga. Ela defende que o domínio da mulher sobre o próprio corpo está muito ligado à reivindicação dessa geração. "Quando éramos crianças, coisas normais como dores no peito e menstruação eram tratadas como assunto de médico. E geralmente era um homem velho e barbudo."
No texto acadêmico em que falou da tortura, Eleonora mencionou a questão do corpo. "Na tortura, vi-me fraca, frágil e com medo, mas também encontrei forças para reagir, pois foi na tortura que pude ver todo meu corpo de mulher sendo usado por monstros masculinos. (...) Me descobri uma mulher forte com muita vontade de ser alguém. Queria muito ser mulher e sabia que conseguiria."
O risco é que o veto de Dilma à discussão de temas como o aborto faça a celeuma provocada pela indicação de Eleonora se parecer ainda mais com o mítico episódio dos sutiãs incendiados. Em 7 de setembro de 1968, quando 400 mulheres do Woman"s Liberation Movement (Movimento pela Liberação da Mulher, em tradução livre) protestaram contra o concurso Miss America, foram jogados no lixo maquiagens, cílios postiços e sutiãs, numa crítica à opressão dos padrões de beleza. Mas nada foi queimado. Pelo menos naquele dia, tudo ficou na mesma.