O globo, n.30754 , 19/10/2017. ECONOMIA, p.21

RAQUEL DODGE PEDE REVOGAÇÃO DE PORTARIA

DANIEL GULLINO

RENATA MARIZ

KARLA GAMBA

 

 

Procuradora-geral diz que novas regras de combate ao trabalho escravo são um recuo nas garantias básicas

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recomendou ontem ao ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que seja revogada a portaria que modificou regras do combate ao trabalho escravo. Raquel entregou ao ministro um documento em que oficializa o pedido de cancelamento da medida, além de uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) para que o governo volte atrás. A procuradora-geral tem um histórico de atuação forte no combate ao trabalho escravo no país.

A portaria determinou que a “lista suja” — de empregadores autuados pelo crime — seja divulgada “por determinação expressa” do ministro do Trabalho ou do eventual titular da pasta, o que antes cabia à área técnica. O documento define ainda novos conceitos de práticas ligadas ao trabalho análogo à escravidão. Para que sejam caracterizadas a jornada excessiva ou a condição degradante, por exemplo, agora terá que haver a restrição de liberdade do trabalhador.

No documento, Raquel avalia que a interpretação sobre trabalho escravo não deve se restringir à proteção da liberdade, mas também defender a dignidade. E é justamente na questão da dignidade que, para a procuradora-geral, a portaria cria um “retrocesso nas garantias básicas”. Já o parecer do MPF e do MPT diz que a medida “traz conceitos tecnicamente falhos dos elementos caracterizadores do trabalho escravo, sobretudo de condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas, em descompasso com a jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal Federal”.

 

AUDITORES DE TODO O PAÍS ADEREM À PARALISAÇÃO

Também ontem, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado aprovou um convite para que o ministro do Trabalho explique a portaria. Como se trata de um convite, a presença de Nogueira não é obrigatória. Uma audiência pública sobre o tema foi marcada para o dia 8 de novembro.

As mudanças nas regras do trabalho escravo causaram uma cisão dentro do próprio governo. De um lado, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, expressou apoio à decisão dizendo que ela “vem organizar um pouco a falta de critério nas fiscalizações”. Do outro, a ministra Luislinda Valois, dos Direitos Humanos, admitiu que “vai haver retrocesso”, mas tentou minimizar o embate, enquanto Flávia Piovesan, secretária nacional de Cidadania do ministério, apontou a medida como “inconciliável com o Estado democrático de direito”.

Chefes ou coordenadores de combate ao trabalho escravo de todos os estados do país aderiram ontem à paralisação das fiscalizações em repúdio à portaria. “Diante da insegurança jurídico-administrativa da continuidade das ações em andamento e das planejadas, informamos a impossibilidade de cumprimento do atual planejamento, com a momentânea paralisação das ações fiscais, até que a situação seja resolvida”, diz nota divulgada ontem pelos auditores. O comunicado cita leis e portarias da legislação nacional, além de tratados e convenções internacionais, que estariam sendo violadas pela portaria.

A nota foi enviada à Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do ministério, departamento ao qual a Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) está ligado. Questionado sobre o assunto, o ministério não respondeu.

Na segunda-feira, logo após a divulgação da portaria, o secretário substituto da SIT, João Paulo Ferreira Machado, divulgou uma nota na qual condenou a portaria e aconselhou os auditores a manterem os parâmetros usados até então nas fiscalizações. A orientação foi para que ignorassem as novas determinações.

Deputados de diversos partidos também apresentaram Projetos de Decreto Legislativo (PDC) na Câmara pedindo a anulação da nova regra. O PDC é um mecanismo que tem força de revogar atos administrativos, como a do Ministério do Trabalho. Para ser aprovado, ele necessita passar pelas comissões do Trabalho e de Constituição e Justiça e, depois, ir a plenário.

O líder do PPS, deputado Arnaldo Jordy (PA), autor de um dos PDCs, disse que estuda entrar com um pedido de urgência para acelerar a tramitação. Jordy criticou a portaria e pediu bom senso do governo:

— Isso é um absurdo. Eu acho até que, dependendo da reação da opinião pública, essa portaria deveria ser revogada independentemente de PDC na Câmara. Isso vai na contramão do mundo, vai na contramão da opinião pública, vai na contramão da legislação brasileira inclusive, porque você silencia e protege um ato criminoso. Ou seja, uma empresa pratica o trabalho escravo que é proibido na legislação brasileira e nos tratados internacionais que o Brasil é signatário. Espero que o próprio governo reveja isso e nos poupe de ter que discutir os PDCs — declarou o líder do PPS.