O Estado de São Paulo, n. 45277, 04/10/2017. Economia, p.B4
Adriana Fernandes
Idiana Tomazelli
A União foi “sócia do ato de imprudência” que levou ao endividamento de Estados que já estavam em péssimas condições financeiras e tinham maior risco de calote, aponta auditoria concluída pela área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU). Segundo apurou o ‘Estadão/Broadcast’, a corte de contas pode chamar autoridades envolvidas a dar explicações, entre elas o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e o ex-secretário do Tesouro Arno Augustin, que tomaram a decisão de conceder o crédito e agora podem ser responsabilizados pelos atos. Essa política agravou a situação já difícil das finanças dos governos regionais.
O Estadão/Broadcast antecipou em novembro do ano passado o início das investigações do TCU sobre a política de garantias facilitadas adotada pelo governo. A apuração começou depois que o Estado do Rio de Janeiro, um dos maiores beneficiados pelos financiamentos em anos anteriores, deu o calote e obrigou a União a ter de pagar os débitos em seu nome. O levantamento incluiu a análise minuciosa dos contratos de garantias – para dar conta de tantos documentos em papel, o Tesouro chegou a oferecer dentro do órgão uma sala aos auditores do TCU.
Entre 2012 e 2015, a União garantiu R$ 65,2 bilhões em operações de crédito para os governos estaduais em piores condições, um tipo de operação que era para ser exceção e virou regra. Enquanto isso, Estados com menor risco de inadimplência tiveram aval para obter R$ 45,8 bilhões no período. Os dados são do próprio Tesouro, que revisou recentemente os valores de 2013 até agora.
Maquiagem. A manipulação das garantias é uma das vertentes da maquiagem nas contas dos Estados, que foram irrigados com recursos do BNDES, Caixa e Banco do Brasil. As consequências foram o agravamento da crise financeira dos Estados e a necessidade de o Tesouro honrar as dívidas. Só neste ano, a União já pagou R$ 2,27 bilhões por conta de calotes de governos estaduais (99% dos débitos são do Rio de Janeiro).
Segundo cálculos dos técnicos do TCU, pelo menos R$ 100 milhões desse valor correspon- dem a encargos como multas e juros por conta do atraso no pagamento, recursos públicos “jogados fora” por conta da irresponsabilidade na concessão dos créditos. O valor não inclui a correção pela Selic (hoje em 8,25% ao ano), custo adicional que o Estado terá de bancar quando for ressarcir a União pela garantia honrada.
Assim como nas pedaladas fiscais, que permitiram o atraso no pagamento de subsídios do Tesouro aos bancos públicos, as garantias para os Estados com nota Ce D foram possíveis graças a uma portaria desenhada para burlar as regras de boas práticas prudenciais e fiscais. Editada em 10 de setembro de 2012, a portaria (ainda em vigor) dá poderes ao ministro da Fazenda, em “caráter excepcional”, de autorizar Estados com nota baixa a contratar empréstimos com aval da União.
O problema é que dali em diante houve uma explosão de garantias concedidas por Mantega com o chamado “waiver” (dispensa do cumprimento de exigências). De acordo com a apuração do TCU, entre 2013 e 2014 os técnicos do Tesouro Nacional passaram a ser mais enfáticos sobre a baixa capacidade de pagamento dos Estados e formalizaram em pareceres os riscos da política em curso.
Os técnicos começaram a ficar preocupados com as consequências e cobraram de Arno Augustin uma posição. Segundo relatos da época, o então secretário do Tesouro disse que “matava no peito” e que assinaria os documentos necessários.
Na auditoria, o TCU também analisa a conduta do corpo técnico do Tesouro Nacional na concessão das garantias, mas a avaliação preliminar é de que sua atribuição era dar a nota ao Estado. A concessão da garantia era uma decisão das autoridades – secretário do Tesouro e ministro da Fazenda. Mesmo assim, o risco de serem punidos tem norteado uma postura mais cautelosa dos técnicos em operações recentes, como a assinatura do plano de recuperação fiscal do Rio de Janeiro, em que o parecer do órgão aponta fragilidades na estratégia do governo fluminense que podem comprometer o sucesso do socorro.
Após a conclusão do relatório preliminar do TCU, o Tesouro Nacional poderá se manifestar sobre o processo. Mas o órgão do Ministério da Fazenda já indicou à corte de contas que pretende editar uma nova portaria sobre a concessão de garantias, inclusive com nova metodologia já anunciada de concessão das notas aos Estados. A nova portaria deve ter um dispositivo semelhante de “excepcionalização” para a concessão de garantias.
É por isso que o TCU avalia fazer uma recomendação para que os critérios de atendimento desse pedido sejam fundamentados por documentos. Os técnicos identificaram que o pedido de “waiver” (dispensa do cumprimento de exigências) era atendido sem verificação formal das três condicionantes: existência de contragarantias para ressarcir a União em caso de inadimplência, projeto considerado relevante e recursos suficientes do Estado para cumprir a execução do projeto.
A Secretaria do Tesouro Nacional disse que acompanhou e colaborou com o processo de auditoria conduzido pelo TCU, além de ter suspendido a concessão de garantias para entes da Federação com notas Ce D. O Tesouro disse ainda acreditamos que o relatório do TCU deverá trazer propostas de aperfeiçoamento do processo.
A reportagem não conseguiu localizar Arno Augustin e Guido Mantega.
Balanço
R$ 65,2 bi
foi o total das garantias dadas pela União, entre 2012 e 2015, aos governos estaduais em piores condições. Por outro lado, Estados com menor risco de inadimplência tiveram aval do governo federal para obter R$ 45,8 bilhões no período
BRASÍLIA
Em meio à queda de braço entre o Tesouro Nacional e o BNDES sobre a devolução antecipada de recursos pelo banco de fomento, o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu processo para investigar o cumprimento da chamada “regra de ouro” do Orçamento. A corte de contas quer verificar qual é o “buraco” que existe hoje e coloca em risco o cumprimento da norma, bem como o melhor método de apuração dos números.
O levantamento do TCU começou há duas semanas e pode resultar em um alerta ao governo sobre o risco à regra de ouro, principalmente em 2019, primeiro ano de mandato do próximo presidente da República. O descumprimento da norma representa crime de responsabilidade das autoridades. Há a preocupação de que, no futuro, a saída para o problema seja a mudança da Constituição. A regra de ouro é considerado mecanismo importante para barrar déficits fiscais sucessivos e crescentes no Orçamento.
Prevista na Constituição, ela impede a emissão de dívida em montante superior às despesas de capital da União (como investimentos). O instrumento tem como objetivo evitar que o País se endivide para bancar despesas correntes. O risco de descumprimento decorre da sequência de déficits fiscais, que aumentam a necessidade de financiamento em meio à queda da capacidade de investir.
O Tesouro Nacional diz que faltam R$ 184 bilhões para o cumprimento da regra de ouro em 2018 e, por isso, pede a devolução antecipada de R$ 180 bilhões pelo BNDES. O banco de fomento assentiu com o repasse de R$ 50 bilhões ainda este ano, mas os R$ 130 bilhões solicitados para 2018 têm sido alvo de intensa disputa travada nos bastidores entre os integrantes do BNDES e a equipe econômica.
Diante da situação dramática das contas, o próprio Tesouro resolveu divulgar mensalmente a situação em torno do cumprimento da regra de ouro, uma ofensiva para pressionar o banco a repassar o dinheiro.
Mas, mesmo que o banco de fomento atenda ao pedido do governo no ano que vem, em 2019 os técnicos do TCU veem uma potencial insuficiência superior a R$ 200 bilhões, para a qual “não tem BNDES que salve”.
Daí a preocupação da corte de contas, que vê necessidade de o Congresso aprovar medidas que reduzam gastos correntes, sob pena de os brasileiros passarem a conviver novamente com a inflação alta. Entre as medidas que ajudariam nessa direção está a reforma da Previdência.
Em última instância, diante do risco de descumprimento, o governo terá de parar de pagar certas despesas e até provocar um shutdown (apagão) da máquina pública por impossibilidade de emitir nova dívida. Ou criar uma exceção que afaste a regra de ouro em períodos de déficit fiscal. Avaliações preliminares dos técnicos do TCU mostram que essa “regra de transição” apenas jogaria o problema para frente.
O relator do processo sobre a regra de ouro é o ministro Vital do Rêgo, o mesmo que abriu procedimento para acompanhar as discussões sobre a devolução dos recursos do BNDES ao Tesouro. Ele quer assegurar que a antecipação seja feita de acordo com a “missão institucional” do banco e com seus compromissos de concessão de crédito a empresas.
O TCU também vai se debruçar sobre as diferenças metodológicas entre as apurações da regra de ouro pelo Tesouro e pela Secretaria de Orçamento do Ministério do Planejamento. O objetivo da corte de contas é detectar a melhor das duas metodologia ou uma terceira que seja mais adequada.
Transparência. Procurados, o BNDES não se manifestou e o Ministério do Planejamento disse que não comentará as colocações do TCU. A Secretaria do Tesouro Nacional informou, por nota, que “buscou dar transparência às discussões sobre a regra de ouro, alertando de maneira proativa aos órgãos de controle e à sociedade para a existência dessa restrição e para os riscos de não cumprimento da regra”. Afirmou ainda que “desenvolveu um modelo para projetar a insuficiência para o cumprimento da regra de ouro a cada ano, o qual está em processo de aperfeiçoamento, principalmente para projeções de médio prazo”. /A.F. e I.T
PERGUNTAS& RESPOSTAS
Atenção no déficit
1. O que é regra de ouro?
Previsto na Constituição, esse dispositivo proíbe ao governo se financiar (emitir dívidas) para bancar despesas correntes. Isso só é permitido para o refinanciamento da própria dívida ou para despesas de investimento.
2. Por que há risco de descumprimento?
Déficits sucessivos e de gran- de magnitude das contas do governo federal é que estão levando a essa situação.
3. Por que ela foi criada?
É um mecanismo de política fiscal para barrar desequilíbrios orçamentários. O Brasil tem outros dois instrumentos de controle: meta fiscal anual e limitador para o crescimento das despesas, o chamado teto do gasto.
4. Por que o governo não pode descumprir?
O presidente e os ministros das áreas econômica incorrem em crime de responsabilidade fiscal. O presidente poder sofrer impeachment.
5. Qual a solução?
No médio e curto prazos, reduzir os déficits. No curto prazo, o governo pediu ao BNDES a devolução de R$ 180 bilhões de empréstimos repassados pelo Tesouro. Também o governo informou que não vai cobrir mais integralmente o déficit do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que paga o seguro-desemprego e o abono salarial.
Vinicius Neder/ RIO
Em meio ao cabo de guerra entre o governo federal e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) sobre a devolução antecipada de valores da dívida da instituição de fomento com o Tesouro Nacional, o ministro do Planejamento, Dyogo Oliveira, afirmou ontem que uma definição sobre o montante a ser devolvido em 2018 pode ficar para o fim deste ano.
No início do mês passado, os Ministérios do Planejamento e da Fazenda formalizaram ao BNDES o pedido de devolução antecipada de R$ 50 bilhões neste ano e mais R$ 130 bilhões em 2018. Na semana passada, o BN- DES aprovou internamente a devolução de R$ 33 bilhões e prometeu outros R$ 17 bilhões para novembro.
O presidente do banco de fomento, Paulo Rabello de Castro, já afirmou que não é possível resgatar os R$ 130 bilhões pedidos para 2018 sem comprometer a capacidade de o BNDES emprestar. Questionado se o valor a ser devolvido no ano que vem poderia ser inferior a R$ 130 bilhões, Oliveira limitou-se a responder que a decisão sobre isso seria tomada no fim deste ano.
“Havendo recursos disponíveis em excesso no BNDES, que é exatamente o que está ocorrendo hoje, é que haveria essa antecipação (da dívida). Não precisamos definir os R$ 130 bilhões do ano que vem agora. Podemos esperar até o fim deste ano para avaliar exatamente a capacidade de caixa do BNDES”, afirmou Oliveira, depois de participar de evento sobre regulação do setor de saúde suplementar, promovido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas ( Ibre/FGV), no Rio.
Segundo o ministro, a avaliação levará em conta “a necessidade de atender à demanda por crédito no ano que vem”, mas o BNDES tem o valor em caixa. “Vamos avaliar o valor. Hoje, o BNDES tem um volume de recursos em caixa bastante considerável. Esses R$ 33 bilhões já aprovados não prejudicam em nada a capacidade de funcionamento do BNDES”, disse.