O Estado de São Paulo, n. 45323, 12/11/2017. Política, p.A6

 

 

 

 

 

Relatórios são genéricos e sem padrão

Deputados reproduzem agenda de missões oficiais e até copiam prestação de contas de colegas; 167 documentos estão pendentes na Câmara

Por: Adriana Ferraz

 

Adriana Ferraz

 

A ausência de um modelo-padrão para determinar o que deve compor a prestação de contas de uma viagem oficial parlamentar impede um acompanhamento transparente dos resultados das missões feitas pelos deputados tanto no exterior como dentro do País. Carentes de detalhes, há relatórios que, quando entregues, acabam funcionando como um resumo da programação a ser cumprida – apenas neste ano 167 estão pendentes, sendo que a maioria se refere a roteiros nacionais.

Foi o que fez, por exemplo, o deputado Pauderney Avelino (DEM-AM). No sexto dos nove dias de viagem à Suécia, Espanha e França (realizada de 11 a 20 de junho deste ano), Avelino teve um jantar às 20h30 em que deveria ir com “blazer e sem gravata”, segundo o relatório produzido por ele e publicado no site da Câmara. O documento não diz quem mais compareceu ao evento nem o endereço do restaurante em Sevilha, mas informa que no mesmo dia ele fez visita turística à cidade e dois dias depois, em Paris, cumpriu “despachos internos”.

“O relatório foi feito de acordo com a que a Câmara pediu. Se pedir mais detalhes, obviamente ninguém se furtará em responder”, disse Avelino. O documento, segundo ele, ainda revela sua pouca experiência em missões oficiais – foi a primeira vez em que viajou ao exterior a convite.

Para o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGVSP, somente viagens com finalidade clara deveriam ser autorizadas. “Quando se trata de dinheiro público, a prestação de contas precisa ser completa. As viagens realizadas trouxeram resultados para a atividade parlamentar?”, questionou.

Segundo levantamento feito pelo Estado, há prestações de contas pendentes desde 2015 – caso, por exemplo, de uma viagem feita pelo atual vice-líder do governo Michel Temer na Câmara, deputado Beto Mansur (PRB-SP), a Las Vegas, para participar de uma feira de tecnologia. Ele disse não se lembrar da viagem. “Devo ter ido, não sei.”

Sobre a ausência de relatório, Mansur afirmou que esse trabalho é de sua assessoria, que, por sua vez, apresentou à reportagem o comprovante de que entregou o documento e informou não entender por que o documento não está publicado no site. A Câmara não se manifestou.

No mesmo ano, em 2015, houve ao menos um caso em que dois deputados dividiram a mesma prestação de contas de um roteiro a Israel. Caio Narcio (PSDB-MG) fez o documento também para o colega Roberto Sales (PRB-RJ). “A missão foi conjunta, participamos dos mesmos eventos, por isso a prestação de contas é uma só. O Sales ajudou na elaboração do relatório, que tem muitos detalhes do que vimos lá”, disse Narcio.

O prazo para a entrega do texto é de 15 dias após o fim da viagem. Procurada, a Câmara não explicou o porquê dos atrasos. / COLABORARAM VÍTOR MARQUES, MARIANNA HOLANDA, CECÍLIA DO LAGO, RENATO VIEIRA, ANA BEATRIZ ASSAM e JÚLIA BELAS, ESPECIAIS PARA O ESTADO

 

Brasil

As viagens internacionais representam 58% das missões oficiais desta legislatura. No total, somados os deslocamentos feitos dentro do Brasil, o número de viagens chega a 1.042.

 

Custos

US$ 550

ou R$ 1.793 é o valor da diária internacional, quase o dobro de um salário mínimo, R$ 937.

 

30%

das passagens foram de classe executiva – até três vezes mais caras do que as econômicas.

 

PRESTAÇÃO DE CONTAS

Exemplos de relatórios de viagem apresentados por deputados

 

Pauderney Avelino (DEM-AM)

Destinos: Suécia, Espanha e França (junho/2017) Relatório reproduz programação, que inclui “visita turística” e “jantar blazer sem gravata”

 

Antônio Jácome (Podemos-RN)

Destino: Cuba (junho/2017) Parlamentar do Podemos descreveu viagem sem detalhar programação

 

Roberto Sales (PRB-RJ) e Caio Narcio (PSDB-MG)

Destino: Israel (outubro/2015) Os parlamentares do PRB e do PSDB, que participaram da mesma viagem a Israel, apresentaram o mesmo relatório

 

 

 

 

 

 

Câmara deveria relatar despesas item por item

 

ANÁLISE: Manoel Galdino

 

No momento em que o Congresso encontra-se com o índice de confiança da população mais baixo da história, a melhor maneira de restaurar a imagem das Casas é por meio da transparência, mecanismo pelo qual a sociedade pode controlar o uso dos recursos públicos e exigir lisura de seus representantes.

No caso das viagens que os deputados realizam representando a Câmara, transparência pública seria dispor as informações das despesas, detalhadas por valor e item, incluindo as passagens aéreas. Ademais, é necessário que os relatórios que eles são obrigados a apresentar tenham campos predefinidos e sejam apresentados em formato aberto (isto é, legível por máquina, como por exemplo o formato “csv”, e não em “pdf”).

Isso permitiria que qualquer cidadão fizesse seus próprios cruzamentos de dados e conseguisse conferir como cada deputado gasta nosso dinheiro, bem como descobrir padrões de gastos – como, por exemplo, quem está acima da média, quem viaja por companhias aéreas mais caras etc.

Cabe ressaltar, no entanto, que não somos a “jabuticaba” em matéria de pouca transparência legislativa. A organização sem fins lucrativos americana Sunlight Foundation ainda reportava, em 2015, a pouca transparência nos gastos com viagem dos deputados americanos. Apenas em 2016, a instituição equivalente à Câmara de lá passou a divulgar em formato aberto esse tipo de despesa. Oxalá sigamos o exemplo tardio dos americanos e sejamos mais transparentes nesta matéria.