Título: O poder da leitura
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 18/03/2012, Brasil, p. 11

Aluno do Centro de Ensino Fundamental 2, próximo ao centro de Ceilândia, Kennedy Marcos da Silva Cruz, 14 anos, nunca pensou que era "diferente". "Foi na 5ª série que a professora disse que eu tinha um dom para escrever e interpretar textos", conta o garoto, envergonhado pelo aparelho nos dentes, mas orgulhoso do cabelo à la Neymar. Encaminhado para observação e testes, teve o diagnóstico de superdotação, hoje em dia feito não mais apenas com base no QI, mas em múltiplas ferramentas da psicologia e da pedagogia. Há um ano e meio, frequenta uma sala de recursos, disponibilizada pela Secretaria de Educação do DF para alunos da rede pública e também privada a meninos com altas habilidades, em horário diferente da escola regular.

Frequentador assíduo da biblioteca pública de Ceilândia, Kennedy já leu mais do que muito universitário por aí. Menciona a coleção inteira de Harry Potter, mas se empolga mesmo ao falar do primeiro livro "que não era desses fininhos" que devorou — O Reverso da moeda, de 238 páginas. Viagem ao centro da Terra, clássico de Júlio Verne, é outro título marcante para o garoto. "Ah, li Os Simpsons e a Filosofia, que retrata o pensamento de vários filósofos usando a realidade da família Simpson", lembra Kennedy. Questionado sobre o pensador com o qual mais se identifica, a resposta é certeira. "Nietzsche, porque ele é a favor das bagunças que o Bart apronta", diz o aluno da 8ª série.

Rejeição Em muito, Kennedy se assemelha ao histórico mais comum dos superdotados. Não reconhecia sua habilidade superior, embora ficasse enfadado com o ritmo da aula. Hoje, ainda tem receio de uma certa rejeição por parte dos colegas. "Às vezes a professora faz uma pergunta, eu sei a resposta, mas prefiro não falar. Tem gente que fica zoando", diz o menino. Em outros aspectos, porém, pode se considerar um ponto fora da curva. Aluno de escola pública, morador de uma área carente e filho de gente simples, Kennedy poderia ser mais um da lista gigantesca de 1,2 milhão de crianças e adolescentes superdotados que não conhecem a própria condição.

"É mais comum que haja a identificação na classe média, porque os pais e professores costumam ter mais acesso à informação. O fato é que o fenômeno da superdotação é absolutamente democrático, aparece em todos os estratos sociais. Por que, então, a escola não valoriza os alunos que, a despeito de viverem em comunidades onde o analfabetismo funcional é a regra, aprendem a escrever aos 3 anos?", questiona Maria Cristina. Do ambiente de trabalho da mãe, funcionária dos serviços gerais do Tribunal de Justiça do DF em Ceilândia, onde o padrasto é vigilante, Kennedy tirou inspiração para pensar no futuro. "Quero ser juiz", diz o garoto. A mãe, Maria de Fátima da Silva Cruz, é só orgulho. "Tanto faz juiz ou advogado, quero mesmo é que ele seja feliz", diz a mulher de 35 anos, que tem mais dois filhos. (RM)