Correio braziliense, n. 19947, 03/01/2018. Política, p. 3

 

A força do "lobby do baton"

 

Alessandra Azevedo 

03/01/2018

 

 

Poder chamar a Constituição Federal de 1988 de “Carta Cidadã” é, em grande parte, mérito das 25 mulheres que participaram ativamente da construção do texto durante a Assembleia Nacional Constituinte, entre fevereiro de 1987 e outubro de 1988. Desde a sessão de abertura, elas escolheram se sentar juntas, e assim permaneceram durante os meses seguintes. Foi de mãos dadas e erguidas que as deputadas celebraram o início dos trabalhos que durariam quase 20 meses e marcariam um dos momentos mais importantes na inclusão feminina na política brasileira. De lá para cá, a participação das mulheres no Parlamento aumentou, embora não tanto quanto em outros países. Quase 30 anos depois da consolidação do texto, o Brasil está na 154ª posição no ranking da Organização das Nações Unidas (ONU), com 11% do total das cadeiras ocupadas por mulheres atualmente. Os percentuais nunca passaram de 10% na Câmara dos Deputados e de 15% no Senado Federal.

Apesar de terem sido menos de 5% do total de parlamentares na Constituinte — entre os 559 deputados e senadores, havia apenas 26 mulheres, sendo que uma, Bete Mendes (PMDB-SP), se licenciou do mandato logo no início dos encontros —, as sete jornalistas, quatro advogadas, uma médica, uma economista e até uma atriz, entre outras profissionais, não se intimidaram pelo ambiente predominantemente masculino, embora nem banheiro para elas houvesse no plenário da Câmara, naquela época. Legislações posteriores à Constituição e de importância constantemente reafirmada nos dias de hoje, como as leis Maria da Penha, de 2006, e a que estendeu os direitos trabalhistas e previdenciários às empregadas domésticas, em 2015, só existem pela insistência dessas parlamentares em colocar temas sociais em pauta, constitucionalizar assuntos como a violência doméstica e acabar, pelo menos em tese, com a diferenciação entre homens e mulheres no que diz respeito a direitos.

Esses foram os principais temas das 34 emendas que elas apresentaram ao texto constitucional, de forma coletiva, além das mais de 3,6 mil sugestões individuais. Grande parte delas se baseava em sugestões populares, como a igualdade de obrigações domésticas, independentemente do gênero, e a garantia do direito ao título de propriedade às mulheres com mais de 18 anos, mesmo que não fossem casadas.

Até 2012, por exemplo, as mulheres ainda precisavam de autorização dos maridos para que pudessem fazer laqueadura de trompas caso não quisessem mais engravidar. Outro exemplo é que, só em 2005, também com grande influência dos avanços conseguidos pelas deputadas na Constituição, a expressão “mulher honesta” foi retirada do Código Penal. Até então, se uma vítima de violência sexual se casasse com o agressor ou com qualquer outro homem, o crime simplesmente deixava de existir. Antes da Constituição, também só era possível pedir o divórcio depois de três anos de casada e apenas uma vez. A lei nº 7.841, elaborada no ano seguinte à promulgação da CF, acabou com o limite de divórcios e diminuiu o prazo para um ano.

Igualdade

Além de baterem o pé pela constitucionalização de princípios como igualdade de condições entre os sexos e possibilidade de que mulheres pudessem assumir seus corpos e suas propriedades, as precursoras da atual bancada feminina da Câmara foram responsáveis por inserir na Carta Magna dispositivos como a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que, nas palavras da ex-governadora do Distrito Federal Maria de Lourdes Abadia, que participou da Constituinte, “transformou a esmola em direito” ao criar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) — direito a um salário-mínimo mensal que até hoje é pago a famílias de baixíssima renda.

Apesar de terem sido minoria, as mulheres foram “muito barulhentas”, na definição da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), uma das constituintes de 1988. “Não íamos deixar aqueles homens acharem que mulher não se une, que não debate. Achavam que mulher junta só brigava. Alguns diziam que iríamos brigar e a gente fez questão de se entender”, conta. “Claro que tínhamos divergências, éramos todas de partidos diferentes. Mas conseguimos fazer uma pauta e trabalharmos coletivamente sobre aquela pauta”, conta. “E, por exemplo, se tinha alguma questão sobre a qual as outras não concordavam, isso não ia para a nossa mesa de debate nem de negociação. Cada partido negociava com a sua visão. Aquilo que era consensual entre nós, íamos para a tribuna, conversávamos com nossos partidos e ajudávamos a articular”, lembra Benedita.

“Não tinha essa de faltar ou chegar atrasada. A nossa insistência em participar de todas as reuniões das quais fazíamos parte foi importante para conseguirmos emplacar nossas pautas”, afirma Abadia. Ela diz que, “se as mulheres não tivessem se unido naquela Constituinte, não conseguiríamos nenhum desses avanços”. As conquistas foram fruto da união das deputadas, que foram chamadas de “lobby do batom” e contou com apoio ferrenho de movimentos de defesa dos direitos das mulheres, como o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que lançou a campanha “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher”.

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Luta contra o preconceito

03/01/2018

 

 

Apesar do ânimo e do comprometimento, a caminhada foi dura. Logo no início, na época da campanha, comentários como “isso não é espaço para mulher” eram corriqueiros. “Ouvi muito isso. Então, dava um passo atrás, pensava ‘ai, meu Deus! O que eu faço?’. A época da campanha foi o primeiro obstáculo”, conta Abadia. Segundo ela, era visto como uma ousadia que elas quisessem participar em par de igualdade com homens da elaboração da legislação suprema brasileira. “A gente não tinha experiência de enfrentar uma campanha política, que era um fato sempre vencido por homens, e ficava até um pouco inibida para pedir voto”, conta Abadia.

A discriminação por gênero certamente tirou a chance de muitas das 166 mulheres que se candidataram a uma vaga na Constituinte. A maioria das 26 que conseguiram tinha algum parentesco com políticos, o que inevitavelmente foi fator de grande ajuda na hora da eleição. As poucas que conseguiram passar da primeira fase, a da campanha, se depararam com um Congresso constituído por homens e para homens. Não por acaso, a primeira demanda do grupo não foi para inserir algum trecho específico no texto constitucional, mas por um banheiro feminino no plenário da Câmara. Parece distante, mas o mesmo ocorreu no plenário do Senado, quase 30 anos depois. Só em 2016 foi construído um banheiro feminino no local. “Não é um banheiro que vai mudar toda a situação, mas o fato de não ter um banheiro no plenário é um indicativo de que a Casa não foi preparada para as mulheres. E não foi mesmo”, disse a então procuradora da mulher no Congresso, Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), na época da reforma.

Outra questão apontada por Abadia é que não havia, no regimento interno, o que fazer se uma deputada engravidasse. “O despreparo era tanto que começaram a ter mulheres engravidando e queriam dar licença de saúde. Negamos. Não estamos doentes, precisamos é de licença-maternidade”, reforça a brasiliense. “Pessoas com deficiência, por exemplo, não tinham acessibilidade nenhuma para chegar à tribuna. Era um ambiente todo preparado para outro universo. E ainda é fora da realidade”, considera Benedita.

“Sofremos preconceito, aguentamos chacota. Acharam, inclusive, um absurdo termos reivindicado banheiro para mulheres. Quiseram folclorizar até essa parte, mas nós fomos duras”, completa Benedita. Nas palavras da senadora Rose de Freitas (PMDB-ES), que foi uma das deputadas constituintes, o que o grupo queria não era “apenas o direito de ter o direito, mas também de vê-lo reconhecido como justiça”.