O Estado de São Paulo, n. 45326, 22/11/2017. Política, p. A6.

 

Rio é 'terra sem lei', diz Raquel Dodge

Rafael Moraes Moura / Breno Pires

22/11/2017

 

 

Procuradora-geral critica Assembleia por soltar deputados e entra com ação no Supremo para suspender decisão que revogou prisões

 

 

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, entrou ontem com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender a resolução aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) que revogou as prisões dos deputados estaduais Jorge Picciani – presidente da Casa –, Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do PMDB. Para Raquel, o Rio “é uma terra sem lei”. A ação pode abrir brecha para o Supremo Tribunal Federal discutir o limite de poder das Assembleias para revisar decisões judiciais.

Para a procuradora-geral, a resolução da Alerj fere a separação dos Poderes e descumpre decisão judicial válida. O ministro Edson Fachin, do STF, foi sorteado pelo sistema eletrônico da Corte para ser o relator da ação. O ministro não tem prazo para dar uma decisão sobre o caso. Anteontem, o ministro Luiz Fux havia classificado a decisão da Alerj como “lamentável”, “promíscua” e “vulgar”. Ele disse que o Supremo “certamente” iria rever a situação.

Raquel questiona os argumentos da decisão da Assembleia, que menciona o julgamento do STF no mês passado sobre a aplicação de medidas cautelares a parlamentares (que sejam diferentes da prisão), para embasar o texto de revogação da detenção dos deputados estaduais do Rio.

Para a procuradora-geral, ao contrário do que presumiu a Alerj, a decisão do STF naquele caso é “inaplicável” ao caso definido pelo Tribunal Regional Federal da 2.ª Região (TRF-2) que determinou a prisão dos três deputados estaduais. Naquele julgamento, os ministros do STF decidiram que a imposição de medidas cautelares que dificultem o exercício regular do mandato de parlamentares deverá ser submetida ao aval do Congresso.

Depois do julgamento do STF, o Senado devolveu o mandato ao senador Aécio Neves (PSDB-MG), que havia sido afastado do cargo por decisão da Primeira Turma da Corte e obrigado a cumprir recolhimento domiciliar noturno.

“A decisão do Supremo Tribunal Federal não pode ser aplicada por analogia aos deputados estaduais, nem a Suprema Corte autorizou a extensão de seus efeitos aos Estados e municípios. O eminente ministro Alexandre de Moraes, no seu voto, destacou com muita clareza os limites do alcance daquela decisão, empregando a expressão ‘parlamentares federais’”, escreveu Raquel.

“A Corte Constitucional não ampliou sua decisão a ponto de abarcar todas as Casas Legislativas do País. Além disso, não enfrentou a peculiar situação de um Tribunal Federal decretar a prisão de um parlamentar estadual”, prosseguiu a procuradora-geral da República. Na sextafeira passada, o ministro Marco Aurélio Mello já havia se manifestado sobre a não aplicação automática da decisão do Supremo.

 

Afronta. Para Raquel, a resolução da Alerj “afrontou” o princípio da separação dos Poderes e o sistema federativo. “A aprovação da referida resolução fere os princípios constitucionais da separação dos Poderes e do devido processo legal, alicerces de nossas instituições republicanas, na medida em que o ato legislativo descumpre decisão judicial válida, sem observância do rito processual legal adequado para contestála”, ressaltou.

A procuradora-geral da República também criticou o fato de a resolução legislativa ter sido cumprida por determinação da Alerj, sem expedição de alvará de soltura pelo TRF-2, o que, na sua visão, “é prova eloquente do clima de terra sem lei que domina o Estado”.

“O Tribunal Regional Federal da 2.ª Região foi ostensivamente desrespeitado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. O simples fato de a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, por ampla maioria, ignorar o quadro fático de crimes comuns descrito acima indica a anomalia e a excepcionalidade do quadro institucional vivido neste momento, a exigir resposta imediata e firme do Supremo Tribunal Federal, apta a indicar ao País que a Constituição será respeitada, seja qual for a circunstância”, disse Raquel.

“O quadro descrito revela também, e eloquentemente, os pressupostos para a providência de índole cautelar com vistas a remediar a situação de descalabro institucional no Rio de Janeiro”, destacou a procuradora-geral da República.

 

Reação. Raquel Dodge afirmou que o TRF-2 foi ‘ostensivamente’ desrepeitado pela Assembleia do Rio na sexta-feira

 

Analogia

“A decisão do Supremo Tribunal Federal não pode ser aplicada por analogia aos deputados estaduais, nem a Suprema Corte autorizou a extensão de seus efeitos aos Estados e municípios.”

Raquel Dodge

PROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA

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ANÁLISE

 

Única solução pacífica e civilizada possível é cumprir ordem judicial

Pedro Serrano

22/11/2017

 

 

As razões da atual crise entre os Poderes são complexas e multifatoriais, falaremos de algumas. Primeiro há que se reconhecer que a estrutura funcional do Estado brasileiro, sua engenharia, padece de problemas por causa de uma crise de identidade de modelo, optamos por um mix entre o modelo de controle de constitucionalidade europeu, por cortes constitucionais, que representam os Poderes, logo, se pondo acima deles e controlando em abstrato a validade de atos de todos eles e o modelo americano, que realiza o controle a partir de casos concretos julgados pelo Judiciário e que vinculam tribunais inferiores, mas que não tem o condão de invalidar em abstrato leis e atos legislativos, como bem aponta Nelson Nery.

Assim o Judiciário, embora sendo um dos Poderes da República, que deveria guardar harmonia com os demais, acabou sendo posto num papel superior, podendo controlar abstratamente a validade de leis e atos normativos face à Constituição. De fato perdemos a chance em 1988 de criar uma corte constitucional, composta por julgadores indicados pelos três Poderes, que representasse a sociedade e controlasse abstratamente a validade constitucional de atos dos Poderes indistintamente.

A este problema estrutural se agrega o conjuntural, do ativismo judicial, que tem levado o Judiciário a interpretar a Constituição segundo crenças privadas do julgador e não face ao sentido do texto normativo, passando o Judiciário, muitas vezes, a um papel político instaurador e não se autocontendo nos limites jurídicos de interpretação das normas postas.

Tal patologia tem gerado de um lado o Judiciário invadindo competências do Legislativo e reduzindo a esfera constitucional de prerrogativas parlamentares, de outro, o Legislativo descumprindo ordens do Judiciário, o que não pode ser admitido.

Por óbvio, no crepitar emocional da crise, ocorrem exageros verbais de lado a lado, em especial no âmbito estadual dos conflitos, gerando expressões no mínimo açodadas como intervenção federal etc., o que em nada contribui para que a crise seja debelada.

Quando o STF toma esse tipo de decisão, que invade a esfera parlamentar, é natural que os tribunais inferiores decidam nesse sentido. Pode-se processar o parlamentar na forma posta pela Constituição, mas não se deve prendê-lo fora da hipótese de flagrante delito inafiançável nem afastá-lo do mandato. Não se pode outorgar ao Judiciário o poder de suprimir um mandato popular, sob pena de comprometer o equilíbrio entre os Poderes.

Decisões judiciais podem e devem ser criticadas, mas também devem ser obedecidas por maior que possa ser a crítica, podendose perder o que ainda nos resta de democracia. Não há solução pacífica e civilizada possível sem o cumprimento de ordem judicial.

 

É PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)