O globo, n.30736 , 01/10/2017. ECONOMIA, p.32

ENTREVISTA - ILAN GOLDFAJN

FLÁVIA BARBOSA

GABRIELA VALENTE

MARIA FERNANDA DELMAS

 

 

‘Metade do crédito no Brasil tem taxa subsidiada. É preciso acabar com a meia-entrada’

O presidente do Banco Central defende a mudança nos juros do BNDES. E afirma que, após debelar a inflação alta, o esforço agora é mantê-la neste novo patamar. Para explicar, faz uma analogia com emagrecer: ‘Eu, que já fiz dieta, conheço. Baixar peso é o primeiro esforço.O segundo é mater.' Ele diz que a reforma da previdência é fundamental para a estabilidade da economia.

Sorriso estampado no rosto nunca foi comum em presidentes do Banco Central brasileiro. Não é o caso de Ilan Goldfajn. Nos últimos meses, a inflação no país caiu drasticamente, e analistas já preveem juros em patamar inédito no país. Mas Ilan, que recebeu a equipe do GLOBO em seu gabinete no Rio, diz que não “dá para relaxar”. Segundo ele, ainda há muito trabalho a ser feito para garantir que os juros e a inflação continuem baixos. Para isso, alertou que o Brasil tem de acabar com a “política da meia-entrada” nos financiamentos. Isso significa cortar subsídios. Depois de mudar toda a estrutura dos juros cobrados pelo BNDES, podem estar no radar alterações no crédito rural e no financiamento da casa própria.

 

Poucos presidentes do BC conviveram com o risco de a inflação ficar abaixo do piso da meta. A inflação permanecerá num patamar mais baixo ou é só um efeito da recessão?

A inflação caiu. Os juros estão caindo. A economia está começando a se recuperar. O nosso objetivo é manter isso de uma forma perene. Não dá para relaxar e dizer o jogo está ganho. Já tivemos, no passado, experiências de queda da inflação e até de queda de juros que não se sustentaram. O nosso foco agora é tentar manter a inflação baixa, mas estável. Juros baixos, mas estáveis. São oportunidades que nós, como os brasileiros, temos que aproveitar.

 

O que precisa ser feito?

A direção da política econômica e da política monetária tem de persistir nas reformas. Muita gente diz que a inflação caiu por causa da recessão. Essa ideia de que a inflação “acontece” tira um pouco a nossa responsabilidade. Quando ela fica alta, podem ser choques, mas tem responsabilidade. No trabalho para a inflação ficar mais baixa, nós tivemos decisões importantes. A meta nos parecia desafiadora, porque a inflação estava em 10% e tinha de chegar a 4,5%, mas era crível.

 

O senhor não acha que o BC foi conservador, olhando para trás, pela rapidez com que caiu a inflação?

A razão para a inflação cair é porque você ancorou antes. Não dá para separar as duas coisas. Uma parte de a inflação cair tem a ver com nosso trabalho. É fácil dizer, depois que a inflação caiu, porque ela caiu. Tem um lado que é o choque de alimento. O número não é pouca coisa. A inflação de alimentos do ano passado chegou a quase 10%. E, neste ano, o alimento está caindo 5%. Nós temos um ano com queda de inflação de alimento e de política monetária, por causa da determinação, que permite que as leis de demanda e oferta funcionem. Porque recessão não é suficiente para fazer alimento cair. É só olhar 2014, 2015 e 2016. PIB (Produto Interno Bruto) caindo e inflação em 10% a 11%.

 

A mudança da taxa de juros cobrada pelo BNDES, aprovada neste mês no Congresso, vai ajudar a conter uma volta da inflação?

Hoje, o Brasil tem uma característica diferente do resto do mundo. Tem sistema de crédito dual. Metade do crédito do Brasil tem taxa de mercado. E temos metade do crédito do Brasil que a taxa é subsidiada. O resultado disso é que você tem taxas muito altas para todo mundo. Uns amigos economistas fizeram uma ótima analogia: é a ideia da meia-entrada. O Brasil é cheio de meias-entradas. No cinema, todo mundo tem direito à meia-entrada, e quem paga a inteira paga muito alto. No sistema financeiro, tem meia-entrada também. É um círculo vicioso. Você só consegue reduzir os juros para todo mundo se você conseguir quebrar esse mecanismo.

 

Mas o crédito subsidiado não é só do BNDES. Há outros, como o rural e o habitacional. O senhor acha que tem de haver reforma nesses dois também?

Sim. Nós temos estudos, estamos trabalhando com Banco Mundial. Nada pode ser feito de uma forma prematura, mas nós queremos tornar a economia brasileira um sistema financeiro mais normal. A gente vai olhar tudo que estiver aí.

 

A casa própria está em estudo?

Nada para amanhã. Nesse caso, são estudo mais acadêmicos, de Banco Mundial, para ver o que a gente pode pensar lá para frente. O que eu posso dizer é que não tem nada concreto.

 

A reforma da Previdência está parada. No que isso influi nas expectativas?

Eu diria que o grande risco que a gente corre. Como é que é que a gente garante que esse cenário que está se desenhando de juro baixo e inflação baixa se mantém na frente? Vou até fazer uma analogia: o problema da dieta. Eu, que já fiz dieta, conheço. Baixar peso é o primeiro esforço. O segundo é você manter. E nesse esforço de manter, é onde a gente está. Nós precisamos passar a reforma da Previdência para gente garantir que a gente vai manter esse cenário. Houve muita reforma: a trabalhista, a de educação, teto (de gastos), a questão da TLP (nova taxa do BNDES) e outras reformas do Banco Central como a garantia de crédito. Mas, para as contas públicas, está faltando essa reforma. O grande risco qual é? A gente não terminar o ciclo de reformas e vir um choque externo lá fora. Enquanto tiver com cenário benigno lá fora, ele nos dá tempo. Para manter esse cenário bom de inflação baixa e juro baixo, nós vamos precisar acabar esse ciclo (de reformas).

 

Nas medidas em estudo para reduzir o ‘spread’ (diferença entre a taxa cobrada pelo BC e a praticada pelos bancos), há regras sobre sigilo bancário que poderiam mudar para melhorar a eficácia do cadastro positivo. As entidades de defesa do consumidor têm questionado essas medidas. Como o senhor rebate as críticas?

Na minha visão, o cadastro positivo tinha de ser comemorado pelos consumidores. É a forma como a gente vai conseguir reduzir o juro para todo mundo. Às vezes é uma visão muito pequena. Vou proteger o sigilo de dados positivos do cidadão? E, portanto, não permito que o cidadão, que é um bom pagador, tenha um crédito mais barato. A gente quer crédito mais barato para todo mundo e como é que vamos fazer isso? Dando informações para todos os bureau de crédito. Não basta só os grandes conglomerados terem informação. Nós precisamos democratizar isso. Às vezes a gente acha que está protegendo o consumidor, mas, na verdade, acha que essa proteção não vai ser precificada. Nós precisamos fazer o que o resto do mundo faz.

 

O senhor fala muito sobre as expectativas. Como fazer cenário em meio a um governo tão turbulento?

É sempre melhor trabalhar com menos incerteza em todas as áreas. Não tenho dúvida alguma. Mas, dentro desse contexto, na parte econômica, estamos conseguindo ancorar as expectativas mais favoráveis à frente. As pessoas não acham que vai ter mais inflação no futuro. Isso é um grande ganho.

 

O mercado prevê juros de 7,25% ao ano até o fim de 2017. E há quem estime só 7% ao ano. Tradicionalmente, no Brasil, quem pega crédito no banco nunca vê uma queda tão expressiva quanto a da taxa básica. O senhor acha que, desta vez, a queda dos juros chega ao consumidor?

Eu acho que a gente precisa de políticas sustentáveis. Políticas recentes que tentaram fazer de uma forma voluntariosa não deram certo. Pioraram. Nós também estamos na linha de pensar em políticas que reduzem o spread. Se a gente conseguir manter inflação estável e baixa, juros básicos estáveis e baixos ao longo do tempo, a gente tem todas essas chances. Nós temos experiências quando a Selic cai, ela vem acompanhada de quedas de spread, mas logo depois ela sobe e reverte. Não temos uma experiência duradoura de Selic de um dígito. Quando tivermos isso, isso vai ajudar bastante. Spread bancário é alto por várias razões. Toda vez que você tem um empréstimo ligado a alguma garantia, o spread é menos que a metade. Temos de trabalhar as garantias. Agora, podem registrar todas as garantias eletronicamente. Antigamente era papel: vai para o cartório e carimba, vai a um banco e mostra o papel, vai a outro banco e mostra o mesmo papel. O banco não sabe se o outro usou a mesma garantia. Isso passou. Outra política que é relevante, além da questão da meia-entrada, é a questão da concorrência. Vamos dividir o mercado em cinco segmentos. O primeiro é o dos maiores bancos, e os últimos são as cooperativas. Segmentando para cobrar regulamentação maior para quem tem complexidade e permitir algo mais simples para quem está lá em baixo. E, com isso, a gente consegue fazer a concorrência. A segunda questão é as fintechs (startups financeiras). No mundo todo, um grande potencial de competição vem das tecnologias que mexem com os mercados. No começo, você deixa essas firmas trabalharem sozinhas. Em algum momento, elas vem e pedem regulação. Eles sentem que estão precisando de um certo endosso do regulador.

 

O BIS (BC dos bancos centrais) tem dado demonstrações seguidas de preocupação com moedas digitais. Quais são os riscos associados à bitcoin?

As moedas digitais têm o defeito de serem usadas em aspectos que os bancos centrais não gostam. O aspecto de moeda sombra, de moeda do mercado paralelo. Você usa aquela moeda para poder esconder transações que você não quer que estejam à luz do dia. O segundo aspecto é a ideia de que aquela moeda lá serve como pirâmides. Sob ponto de vista técnico, você só compra porque você acha que vai subir. Eu compro de você porque acho que vai subir mais. Isso leva a crer que sobe o tempo todo. O que não é verdade.

 

Como o senhor avalia as novas regras de juros para o cartão de crédito? As taxas subiram para quem não consegue pagar.

A gente tem de olhar as medidas e o que elas fazem no big picture (ou seja, uma visão geral). A medida não permitiu que o rotativo passasse de 30 dias. Isso beneficia todo mundo. Porque, se você não consegue pagar por algum motivo, você não cai na bola de neve de juros muito alto no cartão. Bola de neve não é bom nem para os bancos nem para o consumidor. Nossa experiência é que, depois de muito tempo, ninguém vai pagar aquilo. O juro que antes era de 15% ao mês e hoje caiu para 10% ao mês. Isso vale para quem pagou mínimo e está em dia. O que não dá para fazer — nem os bancos nem a gente — é criar normas para quem se tornou inadimplente. O que a gente tem que fazer com esse grupo inadimplente é o lado do nosso pilar da agenda BC +, é educação financeira.

 

Há uma discussão hoje sobre a inflação persistentemente baixa no exterior mesmo com a economia global já tendo reativado. É um enigma?

Nos Estados Unidos, com a taxa de desemprego caindo para os níveis mais baixos de muito tempo, normalmente significaria aumento de salário e volta da inflação para meta de 2%. Em algum momento, isso vai voltar. Nós esperamos que essa volta da inflação seja de forma lenta e gradual, de forma que não haveria uma forte reversão.

 

A relação do Banco Central com o Ministério Público Federal melhorou depois do mal-entendido com a MP da Leniência?

Nós temos a medida provisória 784, que está andando no Congresso. Ela foi chamada de MP da Leniência, por causa do debate com o Ministério Público Federal, mas ela faz muito mais que isso. Ela aumenta a punição para os bancos, aumenta a multa máxima. Diz o que é permitido e o que não é. Pelo nome “leniência”, eu acho que ficou aquela confusão de que quem é dono de quê. Desde o começo, a gente falou que é cada um no seu canto. Nós vamos lidar com questões sobre irregularidades administrativas. Tudo que é corrupção vai continuar sendo da órbita do MP. Deixamos claro. O relatório está andando. Esperamos que não haja dúvidas.