Título: A dura herança do apartheid
Autor: Lage, Otacílio
Fonte: Correio Braziliense, 18/03/2012, Mundo, p. 23

Há duas décadas, a minoria branca decretou pelo voto o fim do regime de segregação racial, mas a democracia ainda não trouxe para os negros a igualdade econômica e social sonhada por Nelson Mandela » Belo Horizonte — Foi com o apoio de 68% dos eleitores brancos — os únicos sul-africanos com direito a voto, na época — que um plebiscito encerrou oficialmente o sistema legal de segregação por raças instaurado a partir de 1948. O apartheid marginalizava da cidadania os negros, os indianos e os mestiços, que representavam 80% da população e foram classificados como "não brancos". Ele caiu pelo voto em 17 de março de 1992, dois anos depois de o presidente Frederik de Klerk, branco e dirigente do Partido Nacional, que deu origem ao sistema, libertar o símbolo maior da luta antirracista, Nelson Mandela, como parte de uma reforma empreendida para livrar o país do isolamento internacional quase absoluto.

Passadas duas décadas, e depois de quatro presidentes negros — Mandela, Thabo Mbekil, Kgalema Motlanthe (interino) e Jacob Zuma (o atual titular) —, a África do Sul continua distante dos ideais que inspiraram sua transformação em "nação arco-íris", exemplo de convivência democrática em meio à diversidade étnica. O país é um dos poucos do continente africano com economia diversificada, alicerçada no setor de serviços, na indústria, na agricultura e no extrativismo. É uma ilha de riqueza, mas recheada de contrastes no âmbito social. A corrupção é um problema crônico, especialmente nos governos provinciais, que são responsáveis por grande parte dos serviços necessários aos pobres. É a forma mais comum de enriquecimento entre as pessoas politicamente conectadas.

O sentimento dos negros de que o fim da segregação não resolveu tudo pode ser traduzido por Nontombi Naomi Tutu, 51 anos, terceira filha do arcebispo anglicano Desmond Tutu, ganhador do Nobel da Paz de 1984 por sua luta contra o apartheid. Nontombi lecionou em universidades na Cidade do Cabo, no próprio país, e nas de Hartford e Connecticut, nos Estados Unidos. Atualmente, é consultora de ONGs internacionais que combatem a violência contra a mulher e dão suporte para famílias africanas devastadas pela Aids e pelo câncer em países africanos. Mãe de dois filhos, vive em Nashville, no Tennessee. "O fim do apartheid não trouxe benefícios econômicos para a maior parte da população negra, pois a democratização da economia não ocorreu. Esse foi um dos fracassos da transição política", diz a professora. "A Constituição prega que todos são iguais, mas diversas gerações cresceram aprendendo que os negros eram menos seres humanos do que os brancos e viveram segregadas durante décadas. Isso não muda de uma hora para outra".

Muitos dizem que a "nação arco-íris" é um sonho, e Nontombi acha que esse sonho ainda precisa ser alcançado. "É verdade que a miscigenação não é uma realidade. Mas percebo que há diversos lugares em que as pessoas estão tentando fazer da África do Sul um país de diversidade", ela diz. Em especial, a estudiosa lamenta que a estrutura patriarcal continue tão firme. "A ideia de que o homem tem o direito de fazer o que achar correto com a própria mulher, com as filhas e com as demais mulheres ainda é muito forte. Por isso, as taxas de violência doméstica e sexual são altíssimas. Nossa Constituição, em termos de acesso e direitos, é uma das melhores do mundo, mas ela não é respeitada." Nontombi não abandona, porém, a esperança de ver a comunidade negra realmente livre da tutela branca para viver autônoma, social e economicamente. "Considerando o que já passamos, vale a pena acreditar."