Valor econômico, v. 18, n. 4384, 21/11/2017. Especial, p. A16.

 

 

Dirigir a ONU exige paciência e persistência

Gillian Tett

21/11/2017

 

 

O nono secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) está numa sala no 38º andar da torre da ONU em Nova York, e aponta para uma coleção pratos de porcelana brancos, marcados com o logotipo azul da ONU. "Sinto muito, a comida está ruim", diz. "Bem ruim." Olho para ele, com a silhueta destacada contra a linha do horizonte de Nova York, e dou risada. Nesse raro momento de aspereza, António Manuel de Oliveira Guterres foi preciso. Acabávamos de almoçar em sua sala de jantar particular, e a comida, de fato, estava ruim: uma salada chocha, um peixe de água doce insípido e uma torta indigesta. Chocha, insípida e indigesta: palavras que, em um mau dia, poderiam ser usadas para qualificar a própria ONU. A ONU não é lugar em que as pessoas normalmente falem francamente, acossada como é por regras burocráticas, siglas e delicadezas. O perigo espreita quem fala abertamente. Em 2004, o então secretário-geral Kofi Annan se enredou em uma disputa com o governo Bush em defesa de sua própria sobrevivência profissional, depois de ousar sugerir, em entrevista à BBC, que a guerra contra o Iraque era ilegal.

Embora Guterres ocupe o cargo, ele é prisioneiro do protocolo - e se sente frustrado.

Se existe um período em que o mundo precisa de liderança mundial sincera e coordenada, é este que estamos vivendo. Na semana passada, Guterres esteve na Europa, tentando convencer chefes de governo a aumentar seu foco em mudança climática. Também pediu ajuda para combater a ameaça de guerra nuclear vinda da península da Coreia, a crescente instabilidade no Oriente Médio, o conflito na Ucrânia e os combates no Golfo Pérsico. O que agravou ainda mais a situação é que os Estados Unidos recuaram de seu papel de policiais do mundo do pós-guerra: como explicou Donald Trump durante sua recente viagem à Ásia, ele está forjando a política de governo com base no slogan "A América em primeiro lugar". "A situação na Coreia do Norte está extremamente imprevisível agora", reconhece Guterres.

Mas será que alguém vai ouvir? A ONU enfrenta, mais uma vez, uma crise de credibilidade. Nos últimos anos, foi reiteradamente exposta como ineficiente e grande demais; membros das missões de paz da ONU na República Democrática do Congo foram acusados de abuso sexual e suas autoridades lotadas no mundo inteiro foram acusadas de corrupção. E, embora ex-secretários-gerais da ONU - como Annan ou Boutros Boutros-Ghali - tenham tentado ganhar reputação mundial, o último ocupante do cargo, Ban Ki-moon, era quase invisível: mais secretário do que geral, como gostavam de observar críticos herdeiros de gestões anteriores da ONU.

Em teoria, Guterres está em boas condições para melhorar o histórico de Ban. Passou os últimos dez anos como diretor do Alto Comissariado para Refugiados da ONU, que ele reestruturou, obtendo certa aprovação, e conquistou apoio político de diversos países para defender os refugiados. Mas, como ex-premiê de Portugal, Guterres não tem o status de Trump. "Não sou um tuiteiro profissional", diz ele. Ele também não tem o domínio autoritário de líderes como Xi Jinping ou Vladimir Putin. Em vez disso, tem de atuar com o beneplácito do Conselho de Segurança da ONU e dentro dos limites de seus membros permanentes.

Diante disso, será que uma pessoa que não pode sequer controlar o seu próprio chefe conseguirá verdadeiramente relançar a ONU?

Vestindo um sóbrio terno escuro, o homem de 68 anos que me cumprimenta tem um ar de pároco ou de professor universitário. Digo-lhe que já tinha estado, anteriormente, nessa sala de jantar particular, quando entrevistei Ban; teria ele estudado a possibilidade de mudar a austera decoração? Guterres balança a cabeça. Ele quer pendurar obras de arte contemporânea portuguesa nas paredes revestidas de madeira; sua segunda mulher é ministra da Cultura em sua Lisboa natal. Mas ele ainda não venceu os obstáculos burocráticos que têm de ser superados para pendurar essas obras. "Leva tempo. Tudo leva tempo", diz, rindo.

Senta-se numa cadeira com encosto ergonômico especial: a quantidade de viagens aéreas parece ter cobrado o seu preço. Aparece um garçom com vinho tinto. "Do Vale do Douro", observa Guterres. "Na minha opinião, o melhor vinho de mesa português. 2011 foi um ano excelente. 2013 foi um bom ano. 2012, mais ou menos". Ele se detém, observa de perto a garrafa e suspira. "Este é 2012". Sugere que eu tome o branco. Dou um gole; parece perfeitamente agradável ao meu paladar não especializado. No entanto, a entrada - um prato de folhas verdes - é chocha.

E então, pergunto, por que o senhor quis este cargo? Guterres ignora a salada e começa a falar em tom grave, pressionando as pontas dos dedos juntas acima do prato, como em atitude de oração ou de meditação.

"Se você olhar minha vida, minha vida é um tipo de movimento alternado entre o humanitário e o político", diz. "Quando eu era estudante do curso médio [em Portugal], queria ser pesquisador de física. Depois fui para a universidade, e estávamos no fim da ditadura [portuguesa]. Me envolvi muito no trabalho social nos bairros pobres de Lisboa... e decidi me envolver na política".

"Meu segredo é simples: ser autêntico. Diga a verdade às pessoas, de uma maneira que elas possam entender"

Mais especificamente, ele ingressou no Partido Socialista, e trabalhou por muitos anos em cargos eletivos, antes de se tornar premiê, em 1995. Em seu primeiro mandato gozou de popularidade em Portugal e construiu consenso para a adoção de reformas internas. Também se destacou na área de relações exteriores, ao negociar a transferência de Macau para a China e ao pressionar a ONU a agir na antiga colônia portuguesa de Timor Leste. Depois, em 2002, quando os socialistas perderam várias cadeiras, Guterres renunciou inesperadamente, dizendo que queria "evitar o caos político". Por algum período, desapareceu de vista. Muitos anos depois, jornalistas descobriram que ele estava fazendo trabalho voluntário anônimo em um bairro pobre de Lisboa. "Lecionava matemática para migrantes. Mas não queria, absolutamente, aparecer. Nunca dei importância a legados".

"Quando deixei o cargo em Lisboa, fui atacado por muita gente, mas não disse nada", recorda. "Agora, é claro, todos dizem coisas boas sobre mim - mas isso só porque eu sai de Portugal!"

Guterres assumiu o Alto Comissariado de Refugiados da ONU em um momento difícil: o órgão era um corpo burocrático paquidérmico e a enxurrada de refugiados no mundo inteiro estava esgotando seus recursos. Mas, no seu contido modo de ser, Guterres começou a reformá-lo. "Quando eu comecei no comissariado, 14% dos nossos custos [eram gastos] em sedes; quando saí, eram 6%", lembra. "Quando comecei, 41% eram custos com pessoal; quando saí, 22%. E isso quando estávamos reassentando 100 mil refugiados ao ano".

Esse histórico de reestruturação lhe granjeou respeito entre governos ocidentais preocupados com custos. Ele defendeu, além disso, a formação de parcerias com países não ocidentais, como a China. Isso lhe foi de grande valia na disputa pelo cargo máximo na ONU: embora se considerasse, em amplos círculos, no começo de 2016, que o cargo deveria ser atribuído a uma mulher e/ou a um natural do Leste Europeu, Guterres venceu porque foi bem aceito por todos os membros do Conselho de Segurança da ONU.

Qual foi sua maior proeza nos onze primeiros meses? Impensavelmente, ele a atribui a Donald Trump. "Evitamos um rompimento com os Estados Unidos."

Enquanto um garçom tira nossas saladas, Guterres explica que, quando o novo presidente chegou a Washington, parecia hostil à ONU. "No começo do ano, recebi cartas que diziam que o financiamento dos EUA à ONU seria cortado, juntamente com [o dinheiro para] outros órgãos", relembra. Não era uma ameaça vazia. Há muito frustrados com o multilateralismo burocrático da ONU - e com sua capacidade de atravancar o poder dos EUA - vários presidentes tentavam havia 30 anos cortar as contribuições americanas à ONU, incorrendo repetidamente em atrasos de pagamento. Quando Trump assumiu, disse que reduziria em 40% o financiamento a todos os grupos multilaterais. Desde então, Washington disse que se retiraria da Unesco e devastou a Organização Mundial de Comércio (OMC). Mas, no mês passado, Guterres esteve na Casa Branca, e, apesar de todas as dificuldades, seduziu Trump a fazer um gesto de apoio: o presidente declarou que a ONU "tem o poder de reunir as pessoas como ninguém", prevendo que "vão acontecer coisas que nunca vimos com a ONU".

Como ele convenceu Trump a mudar de tom? "Meu segredo é simples: basta ser autêntico. Diga a verdade às pessoas, de uma maneira que elas possam entender". É mesmo? Guterres sorri e reconhece que Nikki Haley, a obstinada e altamente ambiciosa embaixadora americana na ONU, também teve papel fundamental. "Ela é uma pessoa muito prática, muito construtiva".

E Trump? Estou curioso para saber como o discreto Guterres cria proximidade com o presidente. "Trump também é um homem muito prático", responde Guterres, resvalando com facilidade para a brandura do político experimentado. "Há coisas, naturalmente, em torno das quais absolutamente não concordamos, como mudança climática. Absolutamente não. Mas não posso mudar isso". Ele faz um gesto de indiferença. "Os EUA estão pagando todas as suas cotas [à ONU]. Temos uma relação de trabalho. É uma relação de trabalho".

Chega um garçom com o prato principal: uma grossa fatia de peixe de água doce, um monte de arroz amarelo [preparado com açafrão] e um pouco de acelga cozida demais. Guterres equilibra a faca e o garfo na beirada do prato.

Ele acha mais fácil lidar com os chineses? Guterres faz que sim com a cabeça. "Acho que os chineses me veem como um amigo." Ele manteve um relacionamento próximo com líderes chineses por muitos anos, no momento em que o país se tornou cada vez mais poderoso no cenário mundial. "A China está adotando medidas arrojadas em relação à mudança climática", diz, argumentando que Pequim está "desempenhando papel muito maior em segurança" e até se envolvendo em missões de paz.

A China pode, então, empregar esse papel ampliado para reduzir as tensões na Coreia do Norte? O sorriso de Guterres desaparece e ele pressiona as pontas dos dedos umas contra as outras com força, por cima do prato. "Estou muito preocupado". Deveria ser possível encontrar uma solução pacífica para a Península da Coreia, diz ele, mas não está otimista. "Os riscos de imprevisibilidade são altos."

A ONU pode ter um papel nas negociações? Há uma longa pausa. "Só poderemos ter um papel se esse papel for extremamente discreto", observa ele, finalmente. "É tão discreto que eu não posso responder à sua pergunta."

Estaria disposto a encontrar-se com Kim Jong Un? "Não vejo, no momento, nenhuma circunstância em que isso faria sentido."

Uma das muitas reformas que Guterres tenta introduzir na ONU é incorporar mais de mulheres à organização

Outra pausa. Como um pouco de meu peixe, e Guterres me conta que visitou a Coreia do Norte uma vez, há 30 anos, como parte de uma delegação parlamentar. "Fomos convidados a ir a um estádio para ver um show de 'ginástica em massa'. E isso incluiu, por uma hora e meia, 15 mil crianças fazendo todo tipo de exercício [...] coisas complicadas de ginástica, ginástica acrobática. Durante uma hora e meia, 15 mil crianças [...] e não há um único movimento errado. Isso mostra a natureza da sociedade".

E quanto ao Irã?

Ele parece relaxar um pouco. A situação, diz, não é "crítica". Mas ele se mostra consternado com as ameaças de Trump de abandonar o acordo para levantar as sanções ocidentais contra o Irã em troca do congelamento do desenvolvimento nuclear do país. O acordo com o Irã "reduz o risco de proliferação", diz. "A combinação da situação da Coreia do Norte com essa situação do Irã é que [...] podemos sofrer um sério golpe contra a não proliferação. Isso seria um desastre".

Uma obsessão particular para ele nestes dias é a guerra cibernética. "Acredito que, se tivermos uma guerra séria no futuro, vai haver, primeiro, um ciberataque para desorganizar as capacidades do outro lado, para paralisar, por exemplo, a rede elétrica de um país", diz. "Na Primeira Guerra Mundial, as batalhas começavam com uma barragem de artilharia. Na Segunda Guerra Mundial, era com aviões bombardeando primeiro, antes de os soldados avançarem. Agora, são os ciberataques".

Um garçom tira os pratos com o peixe que sobrou e serve a sobremesa: torta e doces de alta pastelaria. Eles permanecem, em grande medida, ignorados enquanto Guterres fala sobre suas fontes de inspiração. Uma é a Parábola dos Talentos, na Bíblia; ele é católico de criação. Outra é uma frase atribuída a Jean Monnet, um dos fundadores da UE: "Não sou otimista, não sou pessimista, sou apenas determinado".

De sua primeira mulher, que morreu há 20 anos, Guterres aprendeu outras habilidades mais sutis. Ela era psicanalista e encorajava Guterres a colocar políticos - e a política - em um divã metafórico durante negociações.

"Uma lição crucial de minha vida política é essa análise [psicológica] muito simples", explica. "Quando você tem duas pessoas em uma sala, não são duas, são seis: o que cada pessoa é; o que cada pessoa pensa que é; e o que cada pessoa pensa que a outra é. Essa é a razão pela qual as relações pessoais são tão complexas. Mas o que é verdadeiro para pessoas é verdadeiro para grupos e países", acrescenta.

"É por isso que há ataques preventivos. Então, o que, para mim, é essencial [com a] Rússia e os EUA ou a Coreia do Norte e os EUA é garantir que esses seis se tornem dois, que a percepção se alinhe com as realidades". Isso é complicado, observo. "Muito complicado", ele suspira.

Uma das muitas reformas que Guterres tenta introduzir nas Nações Unidas tem por objetivo incorporar um número maior de mulheres à organização.

Se isso vem funcionando?

Ele encolhe os ombros. No topo, ele conseguiu progressos consideráveis. O desafio, no entanto, é nas fileiras mais baixas: nas entranhas da burocracia, há um sistema rígido em vigor que é difícil de reformar em relação ao gênero ou a qualquer outro aspecto. "A pressão é enorme e a máquina, demasiado pesada".

"Você não sente que isso é um pouco uma causa perdida?", pergunto. Ele balança a cabeça. "Isso [o sistema] é pesado, tão pesado. Mas por outro lado, se você der um jeito, em determinado momento, de convencer duas pessoas teimosas a fazer as pazes, e você evitar milhares de pessoas de serem mortas [...]".

Se este é o sonho da ONU, é um sonho que requer um boa dose de pragmatismo. Enquanto conversamos, Guterres se lembra das palavras do falecido político brasileiro Tancredo Neves. "Certa vez lhe perguntaram: 'Quais são as dez qualidades mais importantes de um político?' Ele disse que não sabia as dez, apenas sete: 'Paciência, paciência, paciência, paciência, paciência, paciência e paciência!"

A sala está escura, mas do lado de fora o sol brilha forte sobre a cidade. "Se você quiser reformar as Nações Unidas, precisa ser paciente e persistente".