O globo, n.30737 , 02/10/2017. País, p.3

Dinheiro preso

RENATA MARIZ

 

       

Estados gastam só 1% da verba de R$ 1,2 bilhão disponibilizada para sistema carcerário

Queixa comum e legítima, a falta de recursos para a área carcerária no país foi amenizada no fim do ano passado. Nos últimos dias de 2016, o governo federal distribuiu R$ 1,2 bilhão do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) aos estados, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). Passados dez meses e três massacres de grandes proporções que deixaram ao menos 130 mortos nos presídios, somente 1,1% do montante — cerca de R$ 13,2 milhões — foi investido pelas administrações estaduais.

O valor, levantado a pedido do GLOBO pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça, considera os recursos efetivamente pagos até 30 de agosto. Entram na conta, portanto, as quantias usadas pelos estados para adquirir bens já entregues, serviços que começaram a ser prestados e etapas concluídas de obras. Ou seja, apenas investimentos finalizados (que, em tese, estão produzindo benefícios no cotidiano do sistema prisional) são abarcados no monitoramento do governo federal.

O levantamento aponta que apenas dez estados já gastaram algum tostão do que receberam. O quinhão transferido a cada unidade da Federação foi de R$ 44,7 milhões, divididos em três contas: R$ 31,9 milhões para construção ou ampliação de estabelecimentos prisionais; R$ 8,8 milhões para modernização com compra de equipamentos, veículos e outros itens; e R$ 4 milhões para custeio, como aluguel de aparelhos e manutenção de sistemas.

O Acre saiu na frente como único estado que já conseguiu começar a investir recursos das três contas. Foram R$ 2 milhões em construções, R$ 593 mil de modernização e R$ 172,5 mil de custeio. O Rio Grande do Norte e Goiás também começaram a executar o dinheiro para criação ou reforma de presídios — R$ 1,5 milhão e R$ 2,6 milhões, respectivamente. As demais unidades da Federação concentram seus gastos já efetivados até o momento na parte de equipamentos e de custeio. São elas: Alagoas, Amazonas, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Piauí e Santa Catarina.

 

FALTA DE PLANEJAMENTO

Pelas regras atuais, os recursos não utilizados até dezembro de 2017 terão de ser devolvidos ao Funpen. O prazo pode ser adiado por um ato do ministro da Justiça. Como só faltam três meses para o fim do ano, os estados se apressam para, ao menos, reservar a verba para pagamentos futuros. Isso só pode ser feito, entretanto, quando o processo de contratação de um serviço, obra ou aquisição de bem está adiantado.

Na avaliação do sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o levantamento sobre os gastos do Funpen revela uma premissa ignorada pelo setor de forma geral:

— Mostra que não basta ter dinheiro, é preciso saber gastar. Havia uma reivindicação antiga do repasse tal como feito agora pela primeira vez, na modalidade fundo a fundo, quase como uma solução mágica. Mas soluções mágicas não existem.

Ele aponta um problema crucial na área prisional: falta de planejamento estratégico. Segundo Lima, o setor se acostumou a investir na construção de estabelecimentos prisionais, que demandam processos mais demorados, em detrimento de outros mecanismos que também funcionam para diminuir a superlotação.

— Seria possível construir unidades de semiaberto, necessárias e mais baratas que presídios de segurança máxima. Faltam tornozeleiras eletrônicas em vários estados — diz Lima.

Sobre este quesito, recentemente chamou atenção o caso de Rodrigo Rocha Loures, ex-assessor da presidência que foi flagrado recebendo uma mala de R$ 500 mil da JBS. Preso em Brasília, Rocha Loures foi libertado e é monitorado por uma tornozeleira eletrônica vinda de Goiás.

Os entraves burocráticos são apontados como um dos principais problemas pelos estados. Principalmente para dar início e continuidade às obras. Nas outras duas esferas de gasto do Funpen (compra de equipamentos e despesas de custeio), a execução orçamentária é mais simples. Nem por isso há avanços, apontam os dados.

A doutora em direito Valdirene Daufemback, ex-diretora de políticas penitenciárias do Depen, onde cuidou exatamente dos convênios com os estados, faz uma crítica contundente às queixas de excesso de regras para o gasto, lembrando que elas são válidas para toda a Administração Pública e não apenas a área penitenciária:

— É uma tentativa de justificar o insucesso da política. É bom que existam trâmites rigorosos para sabermos se o recurso está sendo aplicado adequadamente. Óbvio que há redundâncias nas normas que trazem dificuldades, mas não é esse o principal problema.

Segundo ela, os verdadeiros entraves estão na própria estrutura dos governos estaduais, que muitas vezes não têm sequer uma secretaria específica para cuidar da área penitenciária.

— Em muitos locais, o dinheiro é executado pela mesma pasta que cuida das obras da educação e saúde. Não há prioridade, não se tem equipe que saiba manejar os recursos com a celeridade que a burocracia demanda.

— São equipes com pouca tradição de trabalhar na perspectiva da gestão, de pensar em modernizar processos, ainda muito estruturadas na área da segurança, da disciplina — completa Renato Sérgio Lima.