Título: De heróis a vilões
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 19/03/2012, Mundo, p. 12

Afegãos demonstram revolta com o massacre de 16 civis, cometido por um sargento americano, em Kandahar. Eles acusam o Exército dos Estados Unidos de assassinar inocentes e exigem o fim da ocupação

"Eu sou pashtun. Mate-me e chame isso de um erro, me aprisione e chame isso de medida de segurança. Exile meu povo e chame isso de progresso. Roube meus direitos, invada minha terra, declare-me um terrorista e chame isso de desenvolvimento. Mas, ouça, sou pashtun e permanecerei pashtun para sempre. E lembre-se: toda a queda tem uma ascensão. E quando um pashtun se levantar, tudo cairá. Tenho orgulho de ser um pashtun. Não sou um terrorista."

O texto fazia referência à etnia da grande maioria da população de Kandahar (sudeste), a segunda maior cidade do Afeganistão, e estampava, na semana passada, as páginas de afegãos no site de relacionamentos Facebook, com imagens de crianças mortas pelos militares americanos. Passados 3.816 dias desde que teve início a ocupação por forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), os afegãos estãos fartos da presença estrangeira em seu país. Muitos veem os soldados não mais como libertadores do jugo do Talibã, mas como assassinos.

Os erros em série nos bombardeios a supostos terroristas e a matança realizada pelo sargento norte-americano Robert Bales — incidente que custou a vida de 16 civis em Kandahar, em 10 de março passado — minaram a credibilidade da intervenção estrangeira. O Correio colheu depoimentos de moradores de regiões diferentes do Afeganistão. Eles falaram sobre o massacre e sobre a presença dos militares americanos.

"O massacre envolvendo um sargento americano foi inaceitável para muitos afegãos. Poucos dias antes, ocorreu a queima de nosso livro sagrado, o Corão, sem que houvesse qualquer desculpa. Estamos confusos sobre se as tropas dos Estados Unidos estão aqui para nos proteger do terrorismo ou se elas mesmas criam problemas para nós. Não é a primeira vez que esse tipo de coisa acontece. Já tivemos vários incidentes no passado, nos quais as forças da coalizão bombardeiam "vilarejos de terroristas", mas matam muitos civis. O episódio de 10 de março envolvendo o sargento norte-americano é algo difícil de entender. O massacre ocorreu em três áreas diferentes. O militar matou 16 civis desarmados e retornou em segurança à base, sem quem nenhum talibã ou nenhum outro soldado dos EUA o detivesse. Para mim, não existe diferença entre os talibãs e as forças da coalizão no Afeganistão, porque ambos matam meu povo. Por que, em 11 anos, o governo de Hamid Karzai foi incapaz de ter um exército suficiente? Os americanos estão conversando com os talibãs sem envolver o governo de Karzai. O Talibã declarou que vai vingar cada afegão executado pelos EUA e pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Karzai está perdendo sua reputação entre seu próprio povo."

» Haseeb U Rahman, 19 anos, gerente de operações da companhia QRTDW em Cabul

"Como afegão e ser humano, acho que este massacre não apenas matou 16 inocentes, mas também destruiu o respeito e o amor que meu povo tinha pelos americanos. E assassinar pessoas inocentes não ajudará os Estados Unidos a atingirem suas metas. Isso apenas causará grandes problemas e vácuos entre os afegãos e os políticos. Os generais norte-americanos trataram o massacre apenas como um "incidente". Isso mostra como eles estão despreocupados com a forma com que tratam os afegãos. Os direitos humanos têm sido totalmente colocados em perigo. As forças norte-americanas estão fazendo seu trabalho, que é chamado de "limpeza dos terroristas" em partes diferentes do país. Mas quando a um exército é dado um dever ou uma missão, os soldados recebem a forte recomendação de não causar danos à população inocente. Não sei por que as tropas dos EUA não estão obedecendo às regras e as leis das operações militares."

» Khalid Ahmad, 27 anos, morador de Mazar-e-Sharif

"As pessoas daqui não gostam de forças que não são muçulmanas. Por isso, queremos uma retirada rápida. Eu me sinto triste pelo massacre de Kandahar. Não esperava tamanha atitude selvagem das tropas norte-americanas. Os Estados Unidos sempre têm declarado que estão aqui para nos ajudar. Eu estou fortemente mostrando minha preocupação em relação ao assassinato de civis sem qualquer razão, incluindo mulheres e crianças. A ocupação americana tem trazido benefícios e prejuízos para meu povo. Por um lado, temos sido abastecidos com internet, computadores e celulares. Por outro lado, nosso livro sagrado, o Corão, foi queimado pelas forças militares, que fracassaram. Nossas estradas têm sido asfaltadas, mas temos presenciado as mortes de milhares de civis."

» Wassim Naseri, 15 anos, estudante em Kandahar

"O incidente aqui na minha cidade foi muito ruim para os afegãos. Os soldados americanos não pensam antes de fazer algo. Esse massacre foi proposital. Depois desse incidente, não creio que os afegãos apoiarão os americanos. Creio que, por matar afegãos, o sargento deveria ser sentenciado à morte. Tenho visto afegãos desejarem que ele seja executado. As pessoas estão com medo das forças norte-americanas e, por isso, os militares tiram proveito da situação. As tropas dos EUA acham que têm o direito de matar qualquer pessoa. As pessoas daqui não gostam de forças militares que não sejam muçulmanas. Eu soube do massacre pela tevê. A notícia se espalhou rapidamente por toda a cidade. Todos aqui estão tristes e desapontados. As pessoas sabem que as forças americanas não as ajudam tanto quanto as machucam."

» Mirwais Frida, 30 anos, morador de Kandahar

"O massacre de 16 civis foi imperdoável e machuca cada cidadão afegão. Foi difícil expressar os sentimentos quando eu soube do que ocorreu. Após olhar as fotos das crianças mortas, vi o rosto de meus filhos nelas. Esse incidente impactará toda a situação no sul do Afeganistão, caso o assassino não seja punido nem levado à corte. É óbvio que a Força Internacional de Assistência para Segurança (Isaf) será mais alvejada por homens-bomba. Enquanto os militares continuarem com ações selvagens, a insegurança tenderá a aumentar. A presença das forças americanas será mais difícil em áreas remotas, como vilarejos, e não será aceita pela comunidade."

» Nasratullah Wafa Abdulrahimzai, 23 anos, porta-voz do Comitê de Críquete do Afeganistão, morador de Cabul

"Os americanos nunca foram amigos de nós, afegãos. Eles não estão vindo para o Afeganistão para ajudar nosso povo. Eles têm seus próprios objetivos. São Kafer (não muçulmanos), nossos inimigos. Estão combatendo os muçulmanos. Pensávamos que eles fossem nossos amigos e que tivessem vindo para nos apoiar. No entanto, eles só querem destruir nosso país e matar nossa gente. Nosso povo quer saber quem são os norte-americanos e por que vieram para o Afeganistão. Por que matam nosso povo inocente com bombas, foguetes e operações noturnas? Os afegãos não os querem mais em nosso país. Eu trabalhei por dois anos com a Usaid (organização não governamental). Não vi qualquer atividade deles que tivesse caráter permanente. Os afegãos nunca se esquecerão das vítimas do massacre de Kandahar. Não é a primeira vez que eles estão matando inocentes. Não há dúvidas de que não existe mais confiança entre os afegãos e os norte-americanos."