Título: Fraudes nas licitações: afinal, quem é o acusado?
Autor: Bicalho, Alécia Paolucci Nogueira
Fonte: Correio Braziliense, 04/04/2012, Opinião, p. 15

Os escândalos de fraudes em licitações públicas divulgados recentemente na imprensa nacional geraram verdadeira avalanche de inflamados ataques à Lei de Licitações. Mas é necessário um pouco de visão crítica diante da implacável condenação popular da Lei nº 8.666/93. Recomenda-se certa temperança aos arroubos de responsabilização da legislação pelos desvios denunciados. Segundo uma máxima iluminista, o essencial não é amar nem odiar, é compreender.

Em seus quase 20 anos de vigência, assistimos a diversas propostas legislativas versando sobre alterações da Lei Nacional de Licitações (LNL). Várias proposições de mudança do sistema licitatório surgiram no horizonte, algumas amplas e outras pontuais, sendo que os projetos mais robustos foram, em sua maioria, arquivados. O deputado Fábio Trad (PMDB-MS) recebeu da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a missão de consolidar as propostas.

Nesse percurso de vigência da LNL, muitos avanços foram alcançados nas contratações públicas. Observou-se inegável desenvolvimento na aplicação dos institutos, provocado em especial pela evolução da jurisprudência do Tribunal de Contas da União. Os instrumentos de controle da lei foram foco de palpável otimização, pela atuação do TCU, com destaque para o controle das obras e serviços de engenharia, e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), com ênfase nos contratos de serviços contínuos.

Outras leis resignificaram as práticas inerentes às contratações públicas. A Lei do Pregão imprimiu celeridade aos processos, com a redução de prazos de divulgação dos certames, a inversão das fases de julgamento de propostas e habilitação, e a alteração da sistemática do contencioso administrativo. Anote-se à margem que muito se questiona sobre se a economia alardeada foi efetivamente alcançada nessa modalidade licitatória, em que o preço sobrepõe-se inegavelmente à qualidade. A ânsia de faturar o contrato não raro conduz à relativização da consistência dos lances ofertados pelos licitantes, e, em consequência, a distorções durante a execução do contrato.

Já a Lei de Parcerias Público-Privadas possibilitou o controle na melhoria da qualidade da prestação dos serviços públicos, ao introduzir mecanismos de avaliação do desempenho do parceiro privado, tornando factível a mensuração dos resultados. Outra lei, a nº 12.249/10, efetivou os princípios constitucionais do desenvolvimento nacional sustentável e do fomento ao mercado interno, e aqueceu o sistema de preferencialidades. Finalmente, a lei que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações deu um passo adiante, trazendo uma combinação de conceitos e institutos da legislação precedente, em busca da celeridade dos meios e eficácia dos fins.

Os princípios, objetivos e diretrizes das licitações aparecem remodelados no RDC, cuja legislação de regência não apenas indica a vantajosidade como critério de julgamento das propostas, mas viabiliza sua aferição com base em premissas objetivas: custos e benefícios relacionados a fatores de natureza econômica, social, ambiental; condições de aquisição, seguros e pagamento compatíveis com o setor privado; remuneração variável vinculada ao desempenho, e julgamento pelo maior retorno econômico nos contratos de eficiência.

No RDC, o desempenho anterior do licitante surge como critério de julgamento e de desempate, o que possibilita um controle sobre o objeto e o sujeito executor de anterior contratação pelo poder público. Diante dessa realidade, no calor dos debates sobre o rigor no controle e na punição de atos lesivos ao patrimônio público, é essencial, primeiro, separar as coisas: uma coisa é a lei, e outra é o sujeito que cumpre — ou descumpre — seus mandamentos.

Os órgãos de controle interno e externo verificam a legalidade dos atos e seus efeitos lesivos ao erário, mas não têm como se transvestir em polícia administrativa. O elemento humano estará sempre no centro das condutas ilícitas. Essa tendência humana para a prática do crime, para a burla da legislação, nenhuma lei, por melhor que seja, é capaz de conter.

Quanto às licitações, a lei pode sim ser mais rigorosa ao tratar dos crimes e das penas, mediante, por exemplo, restrições patrimoniais, ou outros instrumentos do direito penal cuja ameaça concreta seja apta a conter as fraudes. E sim, é necessário maior rigor na punição. Contudo, nenhum sistema legal milagrosamente novo vai extirpar as patologias indesejadas.

Então, o problema não é a Lei de Licitações, em si, que não merece ser execrada na condição de culpada pelos desvios, mas respeitada por sua importância no cenário legislativo nacional.

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