Correio braziliense, n. 19970, 26/01/2018. Política, p. 2

 

Prisões após segunda instância em revisão

Bernardo Bittar

26/01/2018

 

 

JUSTIÇA » Com uma ação movida pelo PEN pronta para ser julgada, Supremo deve reavaliar o entendimento firmado em 2016 que permite a detenção de réus condenados após julgamento por uma turma colegiada. Medida poderia beneficiar o ex-presidente Lula

O Supremo Tribunal Federal deve acelerar o debate sobre a execução das punições de condenados em segunda instância para evitar questionamentos impulsionados pelo julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pegou 12 anos e um mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá (SP). Atualmente, o STF entende que se pode prender o réu após julgamento por uma turma colegiada, mesmo com recursos a tribunais superiores.

Está pronta para ser julgada pelo Supremo uma ação que tenta mudar o entendimento. Por isso, integrantes do STF acreditam que é preciso decidir o tema de forma permanente. O processo, movido pelo PEN, vai contra o entendimento do colegiado, que permite prisões de pessoas condenadas em segunda instância — como é o caso de Lula, após decisões do juiz Sérgio Moro e do colegiado de desembargadores em Porto Alegre. Os ministros do Supremo temem estragos na imagem da instituição em caso de uma eventual prisão do petista antes de o assunto estar inteiramente resolvido.

Para o ministro aposentado Carlos Velloso, ex-presidente do STF, “o início da execução de decisão condenatória somente após o trânsito em julgado é uma jabuticaba brasileira, que não ocorre em país civilizado do mundo ocidental, constituindo um hino à impunidade”. “O que a Constituição garante é o duplo grau de jurisdição, na forma da lei processual. A justiça da decisão não é examinada após o julgamento do 2º grau e os recursos, daí em diante, são recursos puramente jurídicos”, afirma Velloso.

Conhecido como criador de varas especializadas em julgar crimes financeiros e lavagem de dinheiro, e responsável por empossar o juiz Sérgio Moro na Justiça Federal de Curitiba, o ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp pondera que não é contra a mudança, mas que acredita ser melhor por meio de proposta de emenda à Constituição (PEC). “Só assim para mudar a presunção de inocência.” “Com o caso do Lula, o assunto volta a ter a urgência necessária. Não acredito que o tribunal vá executar essa pena — 12 anos e 1 mês —, tal é o grau de incerteza. E acredito que o presidente Lula vai, sim, conseguir os efeitos suspensivos para obter o registro da candidatura. Acho que Lula consegue o registro para disputar as eleições de 2018.”

Ao Correio, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, que está em Bogotá, afirmou que a volta da chancela do Supremo à possibilidade de recursos infinitos após o julgamento em segunda instância é, “sem dúvida, um retrocesso”. A atuação de Janot à frente do Ministério Público Federal (MPF) criou uma batalha de protagonismo entre a instituição e a principal Corte do país. “O número de colaborações premiadas aumentou depois dessa decisão. A estratégia da defesa não é mais postergar o processo aguardando prescrição. Com o julgamento de 2º grau, está definitivamente acertada a autoria e materialidade do delito. Os recursos aos tribunais superiores não podem alterar isso.”

O ex-procurador-geral fez um levantamento dos recursos que foram para o Supremo nos últimos sete anos. As contas de Janot corroboram sua opinião: dos 3.015 recursos extraordinários em matéria penal que chegaram ao STF, apenas 211 tiveram provimento e foram analisados. Só 41 foram favoráveis aos demandados e apenas dois resultaram em liberação imediata do réu. “Será a volta da impunidade?”, questiona.

Expectativa

Um dos ministros do Supremo que buscam novas discussões sobre o tema é Marco Aurélio Mello, que afirmou que uma eventual prisão do ex-presidente incendiaria o Brasil. “Eu duvido que o façam, porque não é a ordem jurídica constitucional. E, em segundo lugar, no pico de uma crise, um ato desse poderá incendiar o país”, afirmou, logo após a manutenção da condenação de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4° Região (TRF-4). O ministro acredita que, caso o ex-presidente seja preso, seria acionada a nova jurisprudência do STF sobre execução de pena após condenação em segundo grau. “Se não for preso, é porque essa jurisprudência realmente não encontra base na Constituição Federal e tem que ser revista”, disse.

A mudança de entendimento do Supremo é questionada pelo PEN, que ajuizou ação pedindo a reconsideração do Supremo. O deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), pré-candidato à Presidência da República, condicionou sua entrada no partido à retirada de ação movida no STF. A ação declaratória de inconstitucionalidade foi impetrada pelo advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido por representar políticos de alto escalão em ações criminais. “Minha expectativa é julgar o caso em fevereiro. O Judiciário está maduro, vamos conseguir levar esse caso adiante. Pretendo ganhar no plenário do Supremo. Essa questão foi mal interpretada, mas o que realmente acontece é que a prisão após julgamento em segunda instância prejudica milhares de pessoas, e não só as famosas, também aquelas sem rosto e sem voz. Minha expectativa é que a gente consiga reverter essa decisão”, explicou.

Ministros que defendem a mudança discutiram se levam uma ação a julgamento na Segunda Turma para marcar posição e iniciar movimento de revisão no plenário. A ideia era que isso ocorresse no fim do ano passado, antes do encerramento dos trabalhos. A ministra Cármen Lúcia, no entanto, ainda não colocou o caso na pauta de julgamento.

_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Votações em 2016

26/01/2018

 

 

De acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (inciso LIV) e “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (inciso LVII). Desde 2009, a junção dos dois artigos passou a garantir que o condenado deveria seguir em liberdade até que se esgotassem todos os recursos no Judiciário.

Em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu, por 7 votos a 4, que, a partir da condenação por um órgão colegiado — caso dos tribunais de segunda instância —, não existiria mais a presunção da inocência e o réu poderia começar a cumprir a pena mesmo que estivesse recorrendo em tribunais superiores. Votaram a favor da decisão os ministros Teori Zavascki (relator), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski foram contrários.

Em um reexame da questão, em outubro de 2016, o plenário confirmou em acórdão a decisão, dando a ela o caráter de repercussão geral, mas o placar ficou mais apertado: 6 a 5. O ministro Dias Toffoli mudou de entendimento. Em novembro daquele ano, mais uma vez, o tribunal avaliou a questão por meio de uma votação virtual: 6 a 4. A ministra Rosa Weber não se manifestou, mas já era voto contrário. Apesar de o Supremo ter analisado a questão por três vezes naquele ano, o entendimento é que, com o voto do ministro Alexandre de Moraes — que substituiu Teori Zavascki — e diante de declarações do ministro Gilmar Mendes, o placar apertado da última votação acabaria revertido.

_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

"Nós temos recursos processuais em excesso"

26/01/2018

 

 

O senhor acredita que o julgamento do ex-presidente Lula pode pressionar o Supremo Tribunal Federal a colocar a prisão após decisão em segunda instância novamente em debate?

Acho, apenas, que um tema dessa relevância não seria levado assim tão depressa à pauta, logo em seguida à decisão do TRF-4. E a ministra Cármen Lúcia, presidente, é uma notável juíza, acima de qualquer suspeita.

Qual o seu posicionamento nessa discussão da prisão em segunda instância?

Sustento que o início da execução de decisão condenatória somente após o trânsito em julgado é uma jabuticaba brasileira, que não ocorre em país civilizado do mundo ocidental, constituindo um hino à impunidade. Convém esclarecer que a Constituição não estabelece presunção de inocência, e sim de não culpabilidade. As normas constitucionais não se interpretam isoladamente, mas no seu conjunto. O que a Constituição garante é o duplo grau de jurisdição, na forma da lei processual. A justiça da decisão não é examinada após o julgamento do 2º grau e os recursos, daí em diante, são recursos puramente jurídicos. A presunção de não culpabilidade não interfere com a execução de sentença penal da qual não cabe recurso com efeito suspensivo. Ademais, é possível ao interessado, ocorrendo a fumaça do bom direito e o perigo da demora, requerer ao relator do recurso especial e do recurso extraordinário que seja conferido efeito suspensivo ao recurso. A regra, portanto, é a não suspensividade. A exceção, a suspensividade, no caso indicado.

Com uma eventual mudança de entendimento dos ministros, todo o processo terá a possibilidade de chegar ao Supremo. Colocar a possibilidade de a Corte chancelar todos os casos jurídicos no país é viável?

Todo processo pode chegar, falamos em tese, ao Supremo Tribunal Federal, no controle difuso de constitucionalidade, assim no recurso extraordinário. Nada tem a ver, portanto, com a tese do início da execução penal após a decisão do 2º grau.

Isso possibilitaria a volta dos recursos centopeia, aqueles processos sem fim?

Sim. Nós temos recursos processuais em excesso. Assim, no caso de a execução penal somente ocorrer após o trânsito em julgado da sentença, quem tiver um advogado razoável vai tentar, é claro, utilizar-se desses recursos e a execução da pena vai para as calendas. Muitas prescreveriam.

O senhor avalia que há uma quantidade muito grande de recursos no Brasil?

Sim, são demasiados os recursos nas leis processuais brasileiras. Aliás, isso é um mal dos latinos, que gostam de discutir à exaustão. No campo do processo civil, vejam só: após tudo resolvido, após iniciada a execução, há a possibilidade de ser apresentada pelo executado a exceção de pré-executividade que, interpretada com liberalidade, faz paralisar execuções legítimas. Durma-se com um barulho desse. Os processualistas latinos são criativos.

O senhor avalia que o Lula, mesmo condenado em segunda instância, vai ter condições de concorrer às eleições presidenciais de 2018?

O que posso dizer é que temos, no Brasil, uma lei complementar de inelegibilidade, a Lei da Ficha Limpa, que estabelece a inelegibilidade de condenados, por determinados crimes, por órgão colegiado. Essa lei, de iniciativa popular, foi sancionada, aliás, pelo então presidente Lula, e aplaudida pela sociedade. Com a palavra, pois, os tribunais eleitorais, especialmente o Tribunal Superior Eleitoral.