Valor econômico, v. 18, n. 4408, 26/12/2017. Brasil, p. A2.

 

 

O ano em que a China virou chefe de família

Daniel Rittner

26/12/2017

 

 

Do exílio onde foi confinado pelos britânicos em seus últimos anos de vida, Napoleão Bonaparte aproveitou o isolamento de Santa Helena, remota ilha no Atlântico Sul, para fazer algumas reflexões sobre a China: "É um gigante adormecido. Deixem-no dormindo. No dia em que acordar, a Terra vai tremer".

Em 1817, quando escreveu isso, o derrotado imperador francês queria enfatizar que a China não estava condenada à decadência. Na segunda metade do século XX, o Império do Meio se reergueu com um crescimento econômico sem precedentes e testemunhou o maior processo de expansão da classe média jamais visto na história da humanidade. É curioso que, exatos dois séculos depois dos escritos de Napoleão, a China tenha perdido o embaraço em atuar como uma verdadeira liderança global.

Em época de retrospectivas, o ano de 2017 teve um punhado de fatos marcantes: a delação de Joesley Batista, o fim do dualismo esquerda-direita na França, o fortalecimento do separatismo catalão, a crise dos mísseis na Coreia do Norte. Mas provavelmente nada será tão memorável, olhando pelo retrovisor daqui a algumas décadas, do que este novo momento do gigante asiático.

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Lembremos um pouco do que houve. Em janeiro, diante de uma elite global assustada com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, o líder chinês Xi Jinping apareceu em Davos para colocar-se como guardião do livre comércio: "Seguir o protecionismo é como se fechar em um quarto escuro, onde o vento e a chuva podem ficar de fora, mas também não há luz e ar".

Nos meses seguintes, uma sucessão de eventos relevantes reforçou o quadro. Sua primeira base militar no exterior foi inaugurada em Djibuti (na África). Tirando proveito do vácuo de governança deixado por Trump, Pequim foi fiadora do acordo climático de Paris.

A grande virada, entretanto, ocorreu em outubro. Teve como palco o Grande Salão do Povo, um edifício de arquitetura soviética na icônica Praça Tiananmen (Paz Celestial), a poucos metros da Cidade Proibida e do mausoléu de Mao Tsé-Tung. Na abertura do 19º Congresso do Partido Comunista, em um discurso de três horas e meia que se seguiu à coreografia milimetricamente ensaiada das moças que serviam chá para cada um dos 2.287 delegados, Xi Jinping anunciou a chegada de uma "nova era" - expressão repetida 36 vezes.

A ofensiva diplomática conduzida por Xi, nos últimos anos, foi espetacular. A China detém usinas que já totalizam mais de 12 mil megawatts e controlam 20% das linhas de transmissão no setor elétrico brasileiro. Construiu oito hidrelétricas que tornaram o Equador um exportador de energia para seus vizinhos e entregou de presente, a custo zero para a Costa Rica, um moderno estádio de futebol em San José. Ligou norte a sul da Jamaica por uma nova rodovia de pista dupla e foi quem mais deu assistência financeira às pequenas ilhas do Caribe devastadas por furacões.

Tudo isso vinha acontecendo sem ares de triunfo, mas já não seguia precisamente a máxima de Deng Xiaoping, o patrono da abertura econômica chinesa: "Esconda a sua força, espere pela oportunidade, ganhe tempo". Xi definitivamente sepultou essa prudência ao descrever o país no qual a China pretende se converter até 2050: líder internacional, potência militar, exercendo influência no cenário da cultura mundial.

Em outras palavras, no ano que termina, a China anunciou que deixa de ser adolescente para tornar-se chefe de família, ditando regras, encarando responsabilidades, assumindo erros, demarcando claramente suas posições. Pode ter ficado para trás a fase em que os chineses ficam quietinhos nas reuniões da OMC, se fazem de mortos no FMI, evitam elevar a voz na ONU. Eles não só se farão ouvir mais, como vão continuar moldando a arquitetura internacional com suas próprias instituições: o Banco Asiático de Infraestrutura já tem 40 sócios, o Arranjo Contingente de Reservas torna-se uma opção de socorro para os países dos Brics, a Nova Rota da Seda promete investimentos bilionários em infraestrutura, fundos bilaterais oferecem crédito barato para economias emergentes.

Como notou o ex-premiê australiano Kevin Rudd, é a primeira vez desde Jorge I - rei da Grã-Bretanha entre 1714 e 1727 - que o sistema global poderá ser liderado por uma força não-ocidental. Trata-se de um mundo cheio de desafios.

Ian Bremmer, o paparicado fundador da consultoria de risco político Eurasia, colocou da seguinte forma: "Os Estados Unidos não são irrelevantes. O dólar continua sendo a moeda de reservas globais. Chineses ricos continuam investindo em imóveis nos Estados Unidos e mandando seus filhos para escolas americanas. Mas os pilares do poder americano - suas alianças militares, liderança comercial, disposição para promover valores políticos ocidentais - estão erodindo".

A síntese é: desde a derrocada da União Soviética, o mundo acreditava estar vendo a vitória definitiva das democracias liberais, o fim da história. Eis que surge a China, sem ser democrática e sem ser liberal, para confundir e reordenar, quando a potência decadente tem seu presidente mais fraco em décadas. Uma nova força hegemônica, ressalta Bremmer, que protege suas empresas acusadas de espionagem industrial contra concorrentes estrangeiras; que mobiliza seus bancos oficiais para fomentar setores estratégicos; que não precisa discutir à exaustão com legisladores para defender indústrias sob risco de morte, como foi o caso de Barack Obama negociando pacotes de socorro à indústria automotiva no auge da crise financeira.

Espera-se de Xi Jinping, aliás, a suavidade de Obama e não a aspereza de Mao como novo protagonista da economia global. Em 1958, durante uma visita do líder soviético Nikita Kruschev a Pequim, Mao se queixou do tratamento recebido em Moscou quando foi negociar dois tratados na década anterior. Seus auxiliares aconselharam Mao a fazer uma viagem pela Rússia enquanto Joseph Stalin analisava o assunto. O Grande Timoneiro respondeu: "Tenho apenas três tarefas: comer, dormir e cagar. Não vim a Moscou só para dar parabéns a Stalin por seu aniversário. Se não estão interessados em concluir os tratados, que seja. Vou cuidar das minhas três tarefas".

 

Daniel Rittner é repórter especial. O titular da coluna, Antonio Delfim Netto, excepcionalmente não escreve hoje.

E-mail: daniel.rittner@valor.com.br