O Estado de São Paulo, n. 45317, 13/11/2017. Espaço Aberto, p. A2.

 

Delação - cautelas necessárias

 Roberto Romano

13/11/2017

 

 

Crises políticas são férteis sementeiras de ódios e delações. Dos gregos aos totalitarismos, a vida humana retoma naquela prática um alimento odioso. Alguém delata ao desaparecer do seu rosto a vergonha, nomeada na Grécia como Aidós: “Não levar em conta a reprovação das pessoas”. Some o rubor, some a dignidade cidadã. Se delatores têm incentivo do Estado, reinam o medo, a covardia, a impiedade. Em livro a ser lido aqui, com distribuição nas universidades, em jornais, Cortes de Justiça, igrejas, J. G. Ymbert e A. F. Varner dissecam os delatores. O escrito é de 1816 e define a moléstia, fruto do Termidor e da tirania napoleônica. O título: Sobre os Denunciadores e Delatores. A capa indica que é da mesma autoria uma Arte de Conseguir Cargos Públicos.

Os capítulos recolhem traços dos sicofantas. Assim surgem a credulidade, a ignorância, a suspeita, a inveja, a calúnia, a lisonja, o engodo. Fora do lodaçal vêm a inocência, o arrependimento, a verdade. Depois, um estudo sobre a delação antiga e o exame do fato entre os modernos, além de um diagnóstico sobre a origem, o desenvolvimento e organização daquele ato indigno. O livro sugere tratamentos, a parte mais árdua.

O introito mostra que os delatores pululam se um golpe político é praticado. Na batalha pelo poder, o delator encontra a sua oportunidade. Os cargos estão sem titular constante. Técnica rápida: um bilhete, anônimo, é claro, sob a porta da polícia e logo a cadeira se esvazia. “A qualidade do delator e de quem denuncia são, no fundo, a mesma coisa. Parece que ‘delator’ se aplica às denúncias mais odiosas”. Na Encyclopédie dirigida por Diderot, lida e praticada nos futuros EUA e no Brasil das Minas Gerais, o verbete sobre o delator foi escrito por Boucher d’Argis. Ele retoma a distinção entre acusar e fazer uma denúncia. Mas Diderot, no verbete “denunciador, acusador, delator”, esclarece que os termos designam “a mesma ação feita por motivos diferentes”. A distinção entre os sujeitos depende do seu impulso. “O severo apego à lei talvez seja o motivo do denunciador; um sentimento de honra ou movimento razoável de vingança ou outra paixão qualquer, o do acusador; um devotamento baixo, mercenário e servil, ou maldade que se apraz em fazer o mal (...), o do delator. Diz-se que o delator é um vendido; o acusador, um irritado; o denunciador, um indignado (...) o filósofo louva o denunciador, aprova o acusador, percebe no delator o mais desprezível de todos. Foi preciso ao denunciador superar o preconceito para denunciar; foi necessário ao acusador vencer a paixão e o preconceito, para não acusar; não se é delator enquanto resta na alma uma sombra de elevação, honestidade, dignidade.”

Após a Encyclopédie vieram a Revolução de 1789, a Contrarrevolução, a tirania napoleônica. E. Auerbach (Na Mansão de La Molein Mimesis, a Representação da Realidade na Literatura Ocidental) descreve o clima social sob o Corso. Sejam lidos seus comentários sobre o silêncio medroso numa sociedade presa à polícia secreta e aos delatores. Mesmo no almoço familiar surgem espias a serviço do governo. Todos se transformam em lobos mudos do homem. Quem delata usa a língua abjeta para obter dinheiro, absolvição judiciária, cargos públicos, riquezas privadas. O ambiente, em O Vermelho e o Negro, repete a tirania indicada na República platônica. Para expulsar quem ainda exibe dignidade o governante realiza uma purga às avessas. Os médicos retiram do corpo doente os humores péssimos, mas o tirano arranca os bons e, na triagem, o delator é essencial.

Sob a ocupação nazista a França teve farta colheita de cruéis delatores. J. P. Sartre escreveu um artigo imortal sobre o fato: O que é um colaborador?. Entre 1940 e 1944 foram feitas delações escritas em número expressivo: 4 milhões. A população reunia 40 milhões. Quem deseja mais informes leia o volume dirigido por L. Joly, La Délation dans la France des Années Noires. Por decreto (25/10/1941) a delação foi imposta como dever legal. Pessoas delatam e seguem ordens assassinas porque temem pela vida, pela propriedade, por cargos. Mas todas, escreve Sartre, calculam em prol de seus interesses. O cálculo é incompleto, pois o delator dele excluía o poderio bélico norte-americano, a força da União Soviética, o empenho do povo inglês, coisas pouco visíveis em país servil, onde reina a censura. O colaborador só percebe o imediato e curva a espinha diante do suposto vencedor. Passada a guerra, “ninguém” na França teria colaborado. Cabe a boa parte dos que delataram idêntica condenação ao povo da Alemanha feita por Eric Voegelin, no tremendo Hitler e os Alemães: não foram inocentes, a menos que tivessem alegado a torpeza em causa própria.

O Brasil conhece delatores. Na colônia eles são notórios. Ao longo do Império, da República Velha, eles surgem conforme as crises. A sua glória foi na ditadura Vargas. “Cidadãos, certos de que estariam auxiliando na manutenção da ordem nacional, delatavam vizinhos, companheiros de trabalho e conhecidos. Essas contribuições voluntárias chegavam à polícia em forma de cartas, depoimentos na delegacia e telefonemas” (A. M. Dietrich, Caça às Suásticas, 2007). Algo similar se deu no regime de 1964 (M. D. Brepohl Magalhães, A lógica da Suspeição, em Revista Brasileira de História, 1997, Scielo).

Com o solo pátrio adubado pela delação, espanta a relevância que assumiu esse comportamento, agora legitimado por lei. Em vez de colocar os delatores no seu baixo estrato, faz-se deles oráculos a quem é permitido tudo dizer, sem verificações de veracidade, motivos, alvos. Com os vazamentos criminosos, as vítimas são postas à execração pública. O poder não precisa nada provar contra o acusado. Cabe ao último garantir sua inocência. É a lógica dos regimes totalitários e ditatoriais. Se o processo cai nas mãos de juízes isentos, ele é arquivado por inépcia na acusação. Sem corrigir tal método, voltaremos ao pretérito tirânico, ainda que a desculpa seja a boa-fé. A figura desprezível do delator não pode ditar manchetes da mídia, buscas policiais e da Justiça.

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PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE ‘RAZÃO DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO’