Correio braziliense, n. 19994, 19/02/2018. Política, p. 4

 

Quem vai levar o primeiro tiro?

Leonardo Cavalcanti

19/02/2018

 

 

Há uma certeza sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro: a morte. Em 2017, no estado fluminense, mais de 134 policiais deixaram mulheres viúvas e filhos órfãos. No outro lado da trincheira, para cada baixa de um agente do Estado, mais de 30 civis acabaram em covas rasas, depois de confrontos.

Assim, não importa o lado que um dos futuros assassinados estará — seja sob o comando do general Braga Netto, seja sob ordens do tráfico —, a morte é anunciada. Sem contar as vítimas das “balas perdidas”. Em média, a cada sete horas, no Rio, uma pessoa é atingida por tiros.

A certeza das baixas deixa o comando militar apreensivo, até porque, até a noite de ontem, o Palácio do Planalto não havia fornecido qualquer indicação de como será o plano de intervenção no Rio de Janeiro, o que leva alguns generais a acreditarem que estão sendo usados politicamente.

A surpresa do anúncio sobre a ação no estado fluminense dos militares — parte da cúpula do Exército apenas soube da intervenção na madrugada de sexta-feira, depois da reunião do presidente Michel Temer com ministros — deu lugar à tentativa de buscar garantias.

Os generais sabem que a tropa não está preparada para trocar tiros com traficantes, o que, no imaginário popular, deveria ocorrer, por causa da desconfiança nos policiais. E têm uma preocupação com eventuais desgastes na imagem do Exército causados pelo bate-cabeça com as polícias estaduais e com risco de captura de soldados pelo tráfico.

Mas, como a ordem foi dada, resta à cúpula militar se proteger e, assim, aumentar a salvaguarda legal. Explico. Até o fim do ano passado, um militar respondia pelos atos na Justiça comum — a partir da pressão da cúpula do Exército, a regra mudou. A caserna, porém, ainda acha pouco.

É que, em outubro de 2017, o Congresso aprovou o texto que transfere para a Justiça Militar o julgamento de crimes intencionais (dolosos) cometidos por integrantes das Forças Armadas contra civis durante operações. A urgência do projeto havia sido rejeitada durante as Olimpíadas, em 2016. Mas o lobby dos milicos voltou com força no fim do ano passado.

Na época da aprovação, o Correio entrevistou especialistas em segurança pública que discordaram do texto. Como argumento, o fato de que o sigilo da Justiça Militar contrasta com a necessidade de transparência na gestão pública. Mas os militares, com o apoio do ministro da Defesa, Raul Jungmann, conseguiram dobrar os parlamentares, e o texto foi sancionado.

Mesmo assim, os generais acreditam que os soldados em missão no Rio de Janeiro devem ter prerrogativas próprias, tal qual estabelecidas durante missões no Haiti. Ali, o Conselho de Segurança da ONU garantia aos militares brasileiros “o pleno exercício do direito de autodefesa e um poder coercitivo ampliado”. Os soldados também estavam amparados por uma legislação própria que os protegia de quase todos os tipos de eventuais processos judiciais.

“Não queremos licença para matar, mas parece evidente que a tropa vai ter problemas, mesmo quando o criminoso, do outro lado da rua, estiver armado com um rifle”, disse-me um integrante da cúpula militar. A pressão para uma atuação mais efetiva, com salvaguardas mesmo para os crimes intencionais, vai aumentar esta semana. Se vai dar resultado, é outra coisa.