Valor econômico, v. 18, n. 4425, 19/01/2018. Opinião, p. A12.

 

 

A reforma regulatória do setor de saneamento

Rosane Menezes Lohbauer e Fernando Bernardi Gallacci

19/01/2018

 

 

No aniversário de 10 anos do marco regulatório do setor de saneamento, o Governo Federal busca alterar a legislação setorial como forma de fomentar a participação da iniciativa privada e aprimorar os índices de prestação dos serviços. Proposta divulgada recentemente visa alterar a Lei de criação da ANA e Marco Regulatório de Saneamento, excepcionando algumas disposições da Lei de Consórcios Públicos. A reforma, como apresentada pelo Planalto, viria por meio de uma Medida Provisória, cuja minuta foi disponibilizada ao público agora no final do ano.

O objetivo da alteração regulatória parece ser claro e legítimo: aumentar a participação da iniciativa privada nas concessões de saneamento básico, seja no abastecimento de água, seja na coleta e tratamento de esgoto, seja ainda nas atividades de destinação de resíduos sólidos, limpeza urbana e manejo de águas pluviais. Para alcançar tais objetivos propõem-se medidas para assegurar maior segurança jurídica na regulação do setor, bem como para nivelar a competição entre empresas públicas e as empresas privadas.

O primeiro assunto seria promovido por meio da expansão de competências da Agência Nacional de Águas - ANA, que passará a dispor de diretrizes regulatórias ao setor, cuja observância pelos municípios (titulares, em regra, dos serviços de saneamento) será condição para acesso à recursos federais, inclusive financiamento de bancos públicos. O outro ponto, envolvendo a disputa de mercado entre as estatais e as concessionárias de saneamento, está na discussão envolvendo os chamados contratos de programa, instrumento jurídico próprio para contratar sem licitação as sociedades de economia mista estaduais. Aqui, a ideia da proposta do Planalto é introduzir competição nas contratações, exigindo uma chamada pública antes dos municípios celebrarem qualquer contrato. Em paralelo, a MP também busca resolver o dilema das privatizações de estatais do setor, na medida em que prevê a manutenção dos contratos firmados por estas empresas quando da transferência de controle à iniciativa privada. Hoje, se houver uma privatização, todos os contratos de programa seriam extintos, por força do § 6º do art. 13 da Lei nº 11.107/2005.

Em abstrato, sem uma análise detida dos dispositivos propostos pela MP, poder-se-ia argumentar favoravelmente pela necessidade de diretrizes para a regulação do saneamento, assim como pela oportunidade de introduzir competição ao mercado hoje destinado somente às empresas estatais. Todos poderiam ter maior segurança jurídica advinda da padronização de procedimentos regulatórios, sendo certo que também poderiam se valer de melhores serviços caso haja maior competição. Por outro lado, seria igualmente possível contra argumentar, alegando que a competência municipal não poderia ser parametrizada por diretrizes de uma agência reguladora federal, o que, se realizado, pode surtir efeitos contrários ao que se espera, com menos recursos para investimento nos municípios mais carentes (algo próximo ao que ocorre na Política Nacional de Resíduos Sólidos para a extinção dos lixões).

O outro lado da questão das estatais também escuta vozes em função da aparentemente falta de capacidade da iniciativa privada em atender todo mercado hoje coberto por empresas do Poder Público. Ponto, aliás, que fica mais sensível quando consideramos a estrutura de subsídios cruzados, utilizada para custear investimentos em municípios cujo porte e consumo não permitem fechar a conta de uma prestação adequada dos serviços de saneamento.

(...)

Muito embora todos os argumentos acima sejam válidos e devam ser sopesados, para não estagnarmos o debate nestas questões, aprimorando a minuta da MP, ao invés de descartá-la, propõe-se outro foco. Sugere-se análise legal daquilo que faz sentido ao modelo da prestação dos serviços de saneamento básico, apontando o que não se coaduna com o regime constitucional e, portanto, que agregaria risco de inconstitucionalidade à reforma ora em discussão. Neste sentido, já é possível destacar alguns trechos que merecem atenção.

A competência da ANA para agir em épocas de crise hídrica é um destes. Isso porque, a minuta prevê competência para a Agência determinar, "independente da dominialidade dos corpos d'água que formem determinada bacia hidrográfica", a restrição ou a interrupção do uso de recursos hídricos e a prioridade do uso para consumo humano e para a dessedentação de animais. Ocorre que, como a competência ligada aos corpos d'água é constitucional, não pode uma lei federal dispor sobre o uso de corpos d'água estaduais e municipais. Este dispositivo agrega risco de judicialização à medida proposta, o que certamente não corrobora com o desenvolvimento do setor, muito menos garante uma política pública efetiva para combater futuras dificuldades hídricas.

Outro trecho da MP merecedor de maior atenção é aquele ligado às tarifas de saneamento. Aqui é fundamental retomarmos que a titularidade para a prestação dos serviços é, via de regra, municipal. Portanto, é dos municípios que estrutura de regulação das tarifas de saneamento deve partir, mesmo que seja observando diretrizes federais. Ao prever, via legislação federal, regras para cobrança tarifária (por exemplo, os parâmetros para cobrar tarifas de manejo de resíduos sólidos), a MP pode incorrer em outra inconstitucionalidade por afrontar o pacto federativo.

Por falar em pacto federativo, a gestão metropolitana dos serviços de saneamento também é algo que deve ser aprimorado. A minuta exclui os arranjos envolvendo convênios de cooperação, focando exclusivamente em alternativas via consórcios públicos e autarquias metropolitanas. Tal vedação, contudo, poderá dar azo a discussões em face do art. 241 da Constituição Federal, o qual prevê os ditos convênios como instrumentos para prestação associada de serviços públicos. Isso sem falar que atualmente a maioria dos contratos celebrados em regiões metropolitanas é organizada sob a lógica de convênios de cooperação.

A breve análise acima não esgota o debate. As discussões apenas começaram. Por exemplo, o planejamento de investimentos e maleabilidade dos contratos para prestação de serviços de saneamento, sobretudo em vista de passivos ambientais, ainda é um assunto que merece maior cuidado. A publicidade à minuta certamente ajudará nos seus aprimoramentos. É preciso expandir o debate e ouvir todos stakeholders, para evitar judicialização e melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro por meio de serviços públicos de qualidade e com maior abrangência. O Brasil precisa disto.

 

Rosane Menezes Lohbauer e Fernando Bernardi Gallacci são sócios da Madrona Advogados.