Correio braziliense, n. 19992, 17/02/2018. Política, p. 6

 

Previdência (quase) enterrada 

Alessandra Azevedo, Hamilton Ferrari e Natália Lambert 

17/02/2018

 

 

Intervenção federal no Rio praticamente sepulta as chances de se aprovar a PEC que muda as regras das aposentadorias no país

Depois de meses se desdobrando para manter o assunto vivo, o governo, indiretamente, abriu mão da reforma da Previdência ao publicar ontem o decreto que institui a intervenção federal no Rio de Janeiro. As discussões sobre as novas regras de aposentadoria e pensão, que estavam previstas para começar na próxima segunda-feira no plenário da Câmara dos Deputados, foram suspensas diante da constatação do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de que “fica difícil” votar a reforma na semana que vem, com o decreto na pauta, e igualmente “difícil” jogá-la para março. Há meses sem votos, sem tempo para consegui-los e sem apelo popular, a Previdência perdeu para a segurança pública o único apelo que ainda tinha: o status de pauta prioritária do governo.

O ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, tentou dar uma sobrevida à reforma ao dizer que as negociações “continuarão acontecendo” e que a intervenção “não suspende as tratativas que visam a obtenção do apoio parlamentar”, inclusive a reunião com os líderes da base aliada, marcada para a próxima segunda-feira. Mas, mesmo que as conversas resultem nos pelo menos 60 votos que ainda faltam para aprovar a matéria, o obstáculo agora deixou de ser político e passou a ser jurídico. A própria Carta Magna, no parágrafo 1º do artigo 60, proíbe mudanças no texto constitucional durante intervenções, o que afeta a reforma da e outras PECs que estão em tramitação, inclusive a que acaba com o foro privilegiado de autoridades.

O fato de o artigo deixar claro que “a Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal”, mas não especificar se é proibido discutir, votar ou apenas promulgar uma PEC nesse período, abriu brecha para entendimentos diversos. Marun, por exemplo, não vê problemas em discutir a Previdência, desde que ela não seja colocada em votação durante a vigência do decreto. Alguns especialistas vão além e entendem que a reforma poderia, inclusive, ser votada pelo Congresso, desde que não fosse promulgada. “O artigo não proíbe a votação e discussão sobre o projeto, somente impede a emenda, a qual só se dá após a votação duas vezes nas duas Casas”, explicou o advogado Diego Cherulli.

Ciente da restrição, o governo está disposto a revogar o decreto por alguns dias para votar a reforma da Previdência na Câmara, caso os 308 votos sejam alcançados. Durante esse intervalo, o presidente Michel Temer editaria uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ampliada no Rio, mecanismo que seria usado para “ceder a voz de comando às Forças Armadas” durante a votação, explicou o ministro da Defesa, Raul Jungmann. Depois, publicaria outro decreto com o mesmo teor do primeiro para restabelecer a intervenção. Para o procurador regional da República Bruno Calabrich, a estratégia é uma tentativa de burlar a CF. “Seria ‘um jeitinho’ de suspender a intervenção, um artifício óbvio para violar a Constituição, que não permite que se aprove PEC nesses períodos. O risco que o governo corre é de que, caso a reforma passe, depois ela seja declarada inconstitucional”, alertou. O assunto acabaria sendo decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Embates
Embora Maia tenha garantido que a intervenção não é uma “cortina de fumaça” para colocar a reforma, sem votos, em pauta, como alegam a oposição e deputados da base aliada do governo, especialistas avaliam que o momento de envio do decreto foi estratégico. O professor de ciência política da Fundação Getulio Vargas (FGV) Sérgio Praça considera que “o timing da intervenção tem a ver com criar uma notícia para substituir o fracasso da reforma”. “Como viram que a chance de aprovação era próxima de zero, acharam melhor passar para a próxima pauta”, avaliou. Nas palavras de um aliado de Temer, “a ideia foi poupar o governo de admitir a derrota”. Para o líder do PSol, Ivan Valente (SP), é uma forma de “tentar responsabilizar o parlamento pelo fracasso”. “O Executivo investiu muito em propaganda, mostrou o esforço do governo e do próprio Temer em apoiar. Já o Legislativo não se esforçou o suficiente”, concordou Praça.

A reação do mercado
Enquanto o governo anunciava a intervenção no Rio de Janeiro, os investidores ficaram alheios a mais um adiamento da votação da reforma da Previdência. A Bolsa de Valores de São Paulo (B3) chegou a cair 0,55% pela manhã, mas encerrou o pregão com alta de 0,28%, a 84.525 pontos. “O cenário que estava nos preços era de não aprovação da reforma e os investidores já vinham trabalhando com essa possibilidade em um ano de eleição, por isso esse novo adiamento não afetou o mercado”, afirmou a economista-chefe da Rosenberg Associados, Thaís Marzola Zara. Ela lembrou que a alta no fim do dia mostrou que a B3 repercutiu mais o bom momento do mercado lá fora, pois as bolsas norte-americanas se valorizaram bastante nos últimos dias.

“O timing da intervenção tem a ver com criar uma notícia para substituir o fracasso da reforma”
Sérgio Praça, professor de ciência política