Correio braziliense, n. 19992, 17/02/2018. Economia, p. 10

 

Medida para destravar as ferrovias pelo país

Simone Kafruni e Rosana Hessel 
17/02/2018
 
 
Governo pretende incluir cláusula nos novos contratos que permita a diferentes concessionárias de trens acesso a trilhos que chegam aos portos brasileiros. Especialistas alertam para o perigo de formação de cartel caso mudança não seja feita

O governo promete destravar os investimentos em ferrovias em 2018 e tem pela frente o desafio de evitar a concentração no setor. Além de viabilizar a concessão da Norte-Sul (FNS), cujo edital foi aprovado ontem pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), pretende, ainda este ano, antecipar as renovações de cinco concessionárias que operam no país. Comum às duas propostas está a equalização do direito de passagem, utilização da infraestrutura de uma operadora por outras.

Especialistas alertam, entretanto, que o risco de formação de cartel nas ferrovias é grande, porque existem apenas duas operadoras controlando os trilhos que desembocam nos portos: Vale e Rumo. Investidores estrangeiros até tentaram fazer consórcios com essas duas empresas para disputarem o leilão da Norte-Sul sem sucesso, o que levantou a suspeita de que haja intenção dessas empresas de darem lances para aumentar o controle da malha de Norte a Sul, criando um duopólio no país.

“O cartel está em formação e é preciso que o direito de passagem esteja bem claro no edital da Norte-Sul”, alertou o consultor e ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Ruy Coutinho. Segundo ele, o Cade precisará ficar de olho se o edital garantirá o direito de passagem e a livre concorrência. “O Cade não só pode como deve intervir se ficar caracterizado algum tipo de obstrução para novos competidores. O governo tem de se preocupar em ampliar a concorrência no leilão da Norte-Sul, assim como evitar a formação de cartel”, afirmou.

Competição

A Associação Nacional de Transportadores Ferroviários (ANTF) refuta a ideia de que existe duopólio no país. “As concessionárias são empresas de capital aberto, com composição acionária bastante pulverizada, e possuem diversos players como acionistas — entre eles, em alguns casos, entes públicos e importantes investidores internacionais”, afirmou a entidade, acrescentando que “em pouquíssimos casos as concessionárias competem entre si, embora sofram forte concorrência de outros modais, sobretudo do rodoviário, mas também do hidroviário.”

Para Coutinho, qualquer tentativa dos operadores atuais para evitar a concorrência, como cobrar mais caro pelo direito de passagem, poderá ser enquadrada na lei antitruste. “O custo não pode, de forma alguma, inviabilizar a operação de um novo concorrente”, alertou.

O ex-presidente da ANTT e da Empresa de Planejamento e Logística (EPL) Bernardo Figueiredo, representante da Ferrovias Russas (RDZ), que está de olho na FNS, demonstrou preocupação se a renovação dos contratos com as atuais concessionárias não incluir cláusulas obrigando investimentos para ampliar a velocidade média das vias. “Atualmente, é muito baixa, principalmente, nos trechos da Rumo, de apenas 15km/h”, criticou.

Para ele, VLI, empresa de logística da Vale, e Rumo têm vantagens competitivas na disputa da FNS porque são donas dos trilhos que levam aos portos. “Qual o estímulo que uma empresa entrante tem para melhorar a eficiência se, ao chegar na malha por onde precisa passar, sua velocidade vai despencar? Não se pode garantir uma prorrogação por mais 40 anos para andar a menos de 20km/h”, questionou.

Modernização

Segundo o secretário especial do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), Adalberto Vasconcelos, na antecipação da prorrogação, as concessionárias serão obrigadas a modernizar a malha e garantir o direito de passagem. Ricardo Medina, especialista em infraestrutura do L.O. Baptista Advogados, alertou que equacionar a questão do compartilhamento de infraestrutura foi um dos entraves para o lançamento do edital. “O processo foi complicado, mas, na última audiência pública, foi discutido que o poder concedente poderia participar das negociações”, disse.

O superintendente de ferrovias da ANTT, Alexandre Porto, admitiu que, durante as audiências, o órgão regulador chegou a ser acusado de “muito intrusivo” ao tentar incluir cláusulas sobre tarifas. Sobre a baixa velocidade do setor, ele explicou que ela é medida pelo tempo de carregar o trem, andar na malha, descarregar e voltar para origem. “Isso é a velocidade média comercial e procede a informação que é baixa em algumas malhas. Mas vamos buscar melhorar os indicadores por meio de investimento da contrapartida das prorrogações.

O diretor executivo da ANTF, Fernando Paes, esclareceu que, das cinco concessões que demonstraram interesse pela renovação (veja quadro ao lado), a Malha Paulista, da Rumo, está em estágio mais avançado porque foi a única que passou pela audiência pública da ANTT. “O que se percebe é que, nesse primeiro processo, há um rigor maior, o que é natural e, em grande medida, justifica o dilatamento de alguns prazos estabelecidos de início dentro do cronograma do PPI”, disse. “A renovação é uma novidade, um processo complexo, que exige estudos. Mas as propostas das empresas têm um plano de investimentos consistente e extremamente necessários para solucionar gargalos como o do acesso ao Porto de Santos”, acrescentou.

Paes afirmou ainda que, para mitigar a baixa velocidade, “diversas ferrovias vêm modificando seus trens, aumentando o número de vagões e a capacidade”. “As concessionárias têm se esforçado. Mas novas restrições municipais, como a proibição de trens noturnos, agravam a situação. A consequência são mais congestionamentos e eventual cascata ao longo de toda linha”, explicou. Paes ressaltou que há trechos com ocupação superior a 80%, criando gargalos nas principais rotas. “A boa notícia é que receberão melhorias com a renovação para deixarem de ser problemáticos”, completou.