O Estado de São Paulo, n. 45360, 26/12/2017. Política, p.A4

 

 

 

 

 

Soltura de presos expõe divisão dentro do Supremo

Judiciário. Enquanto a 1ª Turma concede habeas corpus em 16% dos casos julgados, o índice a favor do réu chega a 40% na 2ª Turma; especialistas veem insegurança jurídica

Por: Elisa Clavery, Marianna Holanda e Bibiana Borba


Elisa Clavery
Marianna Holanda 
Bibiana Borba

As duas Turmas do Supremo Tribunal Federal (STF) têm entendimentos divergentes sobre a concessão de habeas corpus. Enquanto a Primeira Turma é favorável, total ou parcialmente, a 16% dos pedidos, a Segunda decide próréu em 40% dos casos, mostra levantamento feito pelo Estado com base em dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação.

A discrepância nos julgamentos finais de habeas corpus – pedidos de liberdade após a prisão ou preventivo para impedir a detenção – revela uma “roleta-russa”, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. A consequência, dizem, é insegurança jurídica e perda de legitimidade da Corte, uma vez que a decisão depende mais da turma ou do relator do que da própria lei. Advogados de políticos, parte de investigados na Operação Lava Jato, afirmam que há uma “clara divisão” no Supremo.

Os dados analisados são referentes a julgamentos entre junho de 2015 – mês em que o ministro Edson Fachin, penúltimo a entrar, passou a integrar a Corte – e outubro deste ano. Na semana passada, antes do recesso do Judiciário, os ministros expediram uma série de decisões divergentes, como a soltura de investigados na Lava Jato e a ordem de cumprimento imediato da pena do deputado federal Paulo Maluf (PP-SP).

Reservadamente, um ex-ministro do STF disse à reportagem que é uma tradição a Segunda Turma conceder mais habeas corpus do que a Primeira. Para ele, uma das explicações seria que os ministros mais antigos e, segundo ele, “mais experientes”, estão no segundo colegiado, com exceção de Marco Aurélio Mello. Ele nega que a pressão da opinião pública influencie as decisões, mas diz que há um impulso dos magistrados em “dar satisfação ao público”.

Após o julgamento do mensalão, houve mudança no regimento das Turmas com o objetivo de “desafogar” o plenário. Os colegiados ganharam maior protagonismo e passaram a julgar ações penais de parlamentares, desde 2014. Processos relacionados ao presidente da República e a seu vice, a presidentes da Câmara e do Senado, a ministros da Corte e ao procurador-geral são competência do plenário.

Para o professor de Direito da USP e PUC-SP André Ramos Tavares, “as turmas operam de maneira independente, como se fossem dois tribunais”, uma vez que “o modelo permite essa discrepância”. “A mudança brusca, repentina e constante da jurisprudência é motivo de descrédito. A Justiça não tem de ficar amarrada, nem ser sempre unanimidade, mas o excesso de divergência é mal visto no próprio âmbito jurídico, deslegitima a Corte.”

Até ministros do STF reconhecem a disparidade. Gilmar Mendes, da Segunda Turma, em julgamento em setembro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do qual também é presidente, chamou a Primeira Turma de “câmara de gás”. De volta, ouviu do ministro Herman Benjamin que o segundo colegiado seria, então, o “Jardim do Éden”.

“Não é que se tem uma câmara de gás e um Éden. São dez possibilidades diferentes, de diferentes níveis de câmara de gás e Éden. As Turmas decidem em um contexto de ‘roleta-russa’”, afirma Ivar Hartmann, professor da FGV-RJ e coordenador do Supremo em Números. “Isso traz insegurança jurídica e é um problema de legitimidade.”

Políticos. Embora os dados não detalhem quais processos envolvem políticos ou a Lava Jato, advogados desses casos reclamam da divisão entre as turmas. “Eles (ministros da Primeira Turma) estão desrespeitando a legislação, tratando como definitiva uma prisão provisória. Estão entrando em mérito de acusação, o que não deveria caber às autoridades que julgam prisão preventiva e muito menos à Suprema Corte”, afirma Délio Lins e Silva Júnior, advogado do deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Roberto Podval, advogado do ex-ministro José Dirceu, diz até prever o posicionamento dos ministros. “A gente conhece como votam e chega a saber o que pensam, porque o voto é retrato do pensamento de cada um. Aí, tenta trabalhar a defesa dentro da filosofia de cada qual.” Procurada, a assessoria do STF não comentou as divergências entre Turmas. / COLABORARAM DANIEL BRAMATTI e MARIANA AGATI, ESPECIAL PARA O ESTADO

 

 

 

 

 

 

Decisão não pode ser loteria

Por: Thiago Bottino

 

Thiago Bottino

Cada julgador, uma sentença. Casos semelhantes podem receber interpretações diferentes no momento de aplicar a lei. Por um lado, isso pode parecer um absurdo. Afinal, o direito é um só e igual para todos. O direito, porém, precisa ser interpretado, conjugado com as situações particulares de cada caso. Aplicar a lei ao caso concreto, considerando suas circunstâncias, é fazer justiça. Ao contrário dos juízes, o papel dos tribunais (especialmente do Supremo Tribunal Federal) é construir consensos que perdurem. É olhar aquelas diferentes interpretações, dadas por centenas de juízes em diferentes pontos do Brasil, e escolher, dentre tantas possibilidades, a melhor. É sinalizar para os demais juízes que uma determinada forma de interpretar a lei deve prevalecer sobre todas as outras. É assegurar, enfim, que os casos semelhantes, com as mesmas circunstâncias, serão decididos da mesma forma dali por diante. Porém, se, no Supremo, turmas decidem de formas diferentes, a injustiça é maior. Mostra que a Corte não está cumprindo seu papel de garantir a igualdade. A decisão de um caso não pode ser uma loteria. Ela deve ser previsível e estável.

PROFESSOR DE DIREITO DA FGV-RJ

 

 

 

 

 

Primeira turma deixa de julgar 489 pedidos de HCs

Outro dado levantado pelo Estado mostra que a Primeira Turma avaliou que 489 pedidos de liberdade não tinham mais razão de serem analisados pela Corte – processos chamados de “prejudicados” –, enquanto a Segunda Turma teve a mesma decisão apenas três vezes, de junho de 2015 até outubro deste ano. O pedido pode ser prejudicado, por exemplo, se o réu tiver a prisão preventiva convertida em definitiva em outra instância ou ser libertado. O levantamento revela ainda que 89% das decisões finais sobre habeas corpus foram monocráticas. Das 16.403 ações julgadas, mais de 14 mil foram por decisão de um ministro.