Título: Nove meses para nascer de novo
Autor: Tahan, Lilian ; Marcos, Almiro
Fonte: Correio Braziliense, 08/03/2012, Cidades, p. 25

Como na gestação de um bebê, esse é o tempo que uma dependente leva para se recuperar dos estragos provocados pelo crack e tentar recomeçar a vida longe das pedras da drogaNotíciaGráfico

Nove meses é o tempo de gerar uma vida ou o período para recuperar as que foram perdidas para o crack. Uma gestação fora da barriga, com risco de aborto ou de parto prematuro, mas que se vingar significará ressurreição. Como no percurso de dependência da pedra, o resgate de mulheres viciadas é mais delicado, mais demorado e, às vezes, mais problemático. O tratamento existe e tem o poder da redenção, de transformar experiências devastadores em histórias de superação. Na quinta reportagem sobre as Mulheres de Pedra, o Correio vai mostrar como algumas delas conseguiram suportar o peso do vício e se recuperaram pelas mãos de profissionais engajados em salvar almas femininas da dependência em crack.

No Distrito Federal, existem apenas três comunidades terapêuticas que acolhem mulheres viciadas. Para homens, são mais de 20. Lidar com elas é custoso, exige muita paciência e dedicação (veja no quadro o passo a passo do tratamento). Várias unidades de tratamento que até recentemente atendiam homens e mulheres fecharam as portas para as viciadas. "Com colchão, travesseiro, cobertor, desodorante e um prestobarba eu recupero um homem. As mulheres têm necessidades específicas. Muitas são mães, outras estão grávidas. E tem a TPM (tensão pré-menstrual), quando estão mais suscetíveis a variações de humor. Aí, só Jesus na causa", diz Maria Lúcia Pereira. Ela comanda a Mulheres de Deus, em Ceilândia, a maior comunidade terapêutica para viciadas.

Nos últimos 16 anos, a pastora Lúcia, como é conhecida entre as dependentes, já pegou nas mãos, beijou o rosto e se envolveu com as histórias de mais de 2 mil mulheres egressas das drogas. Recebia as viciadas quando ainda não se ouvia falar do crack. Hoje, mais da metade de suas 24 internas fumava a pedra. "Essa é a droga que transforma pessoas em animais", diz Lúcia, que tem como protocolo de tratamento chamar as internas de "meus bebês". "Elas estão em um processo de reaprender a viver. Perderam noções de higiene, de cidadania, de afeto", diz Lúcia, que adota nove meses como prazo para dar alta às suas meninas.

A cura é um processo que dura longos meses, mas em alguns dias longe do crack as mulheres já retomam hábitos tão próprios delas. "Chegam feito bicho. Mas em poucos dias querem fazer as unhas, dar banho de brilho nos cabelos, passar creme, pedem batom, querem perfume. Voltam a ter a essência da mulher", observa Lúcia. A média de tratamentos bem- sucedidos é de três para cada 10 internações. Recaídas ocorrem em metade dos casos.

Perdas A pastora já perdeu as contas de quantas viciadas se recuperaram. Mas se lembra com tristeza das que se perderam no caminho de volta. Em 2009, Juliana, 21 anos, se jogou do 9º andar de um prédio em Goiânia durante uma crise de abstinência. A família resolveu interromper o tratamento e levar a moça para casa após apenas quatro meses de internação. Aos 24, Lídia também perdeu a luta contra o crack. Foi morta em um terreno baldio de Ceilândia. Ela deixou a comunidade terapêutica depois de cinco meses de acolhimento. Não foi o suficiente. Voltou a se envolver com as drogas, a prostituição e o tráfico.

A luta para renascer exige obstinação e disciplina. Faz parte desse processo cuidar do próprio corpo, aprender um ofício, ter capricho com a casa. As internas acordam 6h30 da manhã. Antes de tomarem café, fazem suas preces. Respeitam escalas de serviço. Lavam, passam, cozinham, fazem artesanato. Voltam a se olhar no espelho. Após superar o vício em uma das drogas mais traiçoeiras que existem, as Mulheres de Pedra se tornam alicerce para o resgate de outras mães, esposas, filhas, irmãs. As que renascem trabalham pela salvação de suas irmãs de vício.

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