Correio braziliense, n. 20022, 16/03/2018. Política, p. 2

 

Os tiros que não calaram Marielle

Alessandra Azevedo

16/03/2018

 

 

GUERRA URBANA » Manifestações no Rio, nas principais cidades do país e no mundo marcaram o dia de homenagens à vereadora assassinada com quatro disparos. Sem avanços sobre os autores do crime, uma das linhas de investigação é de execução por motivos políticos

As quase 24 horas que se passaram entre o momento dos disparos da arma calibre .9mm que mataram a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, na noite de quarta-feira, e o enterro da ativista, às 18h de ontem, foram marcadas por luto e manifestações nas principais capitais brasileiras, repercussão internacional e a promessa de autoridades estaduais e federais de que o caso será apurado. No final do dia de ontem, sem maiores avanços sobre a investigação, restou o consolo de que, apesar do horror do crime, os quatro tiros não calaram Marielle, e a voz dela em defesa dos Direitos Humanos será entoada.

Em Brasília, ainda pela manhã, o presidente Michel Temer enviou o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, à capital carioca, com a missão de acompanhar a investigação. Mas o balanço ao fim do dia trazia muito mais declarações de políticos e autoridades do que respostas concretas sobre a motivação do assassinato e os responsáveis pelo crime. Há divergências até sobre a tipificação do crime, embora a principal linha de investigação da Divisão de Homicídios (DH) da Polícia Civil do RJ aponte para execução.

Diante da forte atuação política de Marielle em defesa dos direitos humanos, pessoas próximas a ela e ao motorista Anderson Gomes, de 39 anos, que também morreu baleado no carro, não duvidam de que tenha sido um homicídio doloso (com intenção de matar), mesma opinião de integrantes de movimentos sociais e do partido da vereadora, o PSol. Deputado estadual da legenda, Marcelo Freixo afirmou que “as características são muito nítidas de execução”. “Queremos isso apurado de qualquer maneira, o mais rápido possível”, cobrou. A vereadora, de 38 anos de idade e menos de dois na política, nunca tinha sofrido nenhuma ameaça, garantiu o deputado.

No Planalto, as declarações de Temer e de ministros apontam para uma fatalidade decorrente da violência no Rio de Janeiro. A ocorrência foi “inaceitável, inadmissível”, declarou o presidente, em vídeo publicado em uma rede social, “como todos os demais assassinatos que ocorreram no Rio de Janeiro”, acrescentou. Nas palavras do ministro da Justiça, Torquato Jardim, trata-se de “mais uma tragédia diária, das centenas que estão ocorrendo no Rio de Janeiro há muito tempo”.

O crime contra uma vereadora que ataca os desmandos da polícia, entretanto, causou impacto internacional pelas características do assassinato, deixando a sensação de que o país está refém de grupos violentos e organizados. Por ora, a linha de investigação aponta que são remotas as chances de que um assaltante, por acaso, tenha se deparado com o Chevrolet Agile branco que levaria a vereadora de volta para casa, na zona Norte do Rio, após sair de um evento no centro da cidade, na quarta-feira.

A polícia apurou que os tiros foram disparados por alguém que provavelmente seguiu o carro por cerca de 4km, sabia onde Marielle estava sentada — no lado direito do banco de trás, onde não costumava ficar —, e que possivelmente é um atirador com experiência, já que as marcas por onde as nove balas passaram indicam que os disparos começaram a ser feitos enquanto o carro do assassino, um Cobalt prata, ainda se alinhava ao das vítimas. Além disso, como todos os objetos que estavam no veículo foram mantidos, a probabilidade de tentativa de latrocínio — roubo seguido de morte — é mínima.

Nos bastidores do Planalto, também surgiu a possibilidade de que o assassinato tenha sido orquestrado como reação à intervenção no Rio. Entre os indicativos, estariam a brutalidade com que foi cometido o crime e a representatividade da vereadora nas pautas de direitos humanos. A Anistia Internacional lamentou que Marielle tenha entrado para a lista de 3,5 mil defensores de direitos humanos que foram assassinados no mundo desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. “Esperamos que o governo faça as investigações com responsabilidade e celeridade, para que possa explicar para a população o que, de fato, aconteceu”, disse Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional.

Próximos passos

Ainda não se sabe ao certo quem conduzirá as investigações daqui para a frente. A responsabilidade original é da Polícia Civil do RJ, que diz ter “capacidade para resolver o caso” sem ajuda da Polícia Federal, designada pelo Planalto para auxiliar no que for necessário. No meio desse embate, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirmou que estuda colocar o assunto de vez nas mãos da PF ao federalizar a ação. Se concluir que esse é o melhor caminho, ela deverá encaminhar um pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tomará a decisão. Dodge foi ontem ao Rio para anunciar a união entre o Ministério Público Federal e o Ministério Público do estado nas investigações sobre a morte da vereadora, com o objetivo de “tranquilizar a população de que esse crime não ficará impune”.

Também no Rio, o ministro Raul Jungmann lembrou que, embora a Polícia Civil esteja à frente das investigações, vários órgãos integram a força-tarefa. “Estão trabalhando de forma integrada as polícias estaduais, Polícia Civil e militar, e com a Polícia Federal, a Abin, Secretaria de Segurança Pública e Inteligência das Forças Armadas. Todos somando esforços para que a Justiça seja feita, para que esse bárbaro crime tenha solução e os responsáveis vão parar na cadeia”, disse.

Independentemente de quem tomará a frente das investigações, os deputados federais se dispuseram a acompanhar cada passo por meio de uma comissão externa, que será instalada nos próximos dias a pedido do PSol, partido de Marielle, com apoio do PT e do PCdoB. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que ontem presidiu uma sessão em homenagem à vereadora, já autorizou a instalação.

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O pior dos inimigos

Leonardo Cavalcanti

16/03/2018

 

 

Confirmada a execução da vereadora Marielle Franco, os militares no Rio terão de enfrentar o pior inimigo, aquele que evitaram em declarações e ações desde o anúncio da intervenção federal: os integrantes da banda podre da polícia fluminense. Mais fortes do que o Estado, esses covardes metem medo nas autoridades.

Os integrantes das Forças Armadas se preocuparam em mudar as regras para salvo-condutos a favor de soldados nos morros na guerra contra traficantes. Até começaram a pensar em mexer nas jornadas de trabalho da PM e iniciaram vistorias em batalhões para levantar condições de trabalho. Mas só.

Não se avançou um passo nas investigações das corregedorias ou mesmo nas denúncias contra policiais militares e civis. A atuação contra as milícias, formadas por grupos paramilitares, também não foram citadas. E assim ficamos, com os covardes adversários da paz no Rio de Janeiro livres da intervenção federal no estado.