Correio braziliense, n. 20022, 16/03/2018. Cidades, p. 19

 

Crime na bilhetagem, uma mina de ouro

Ana Maria Campos e Bruno Lima

16/03/2018

 

 

OPERAÇÃO TRICKSTER » Investigação da Polícia Civil e do Ministério Público resulta na prisão de 34 suspeitos de integrarem uma quadrilha que driblava a fiscalização do sistema de bilhetagem automática, envolvendo principalmente cooperativas de ônibus da área rural

A Polícia Civil e o Ministério Público do DF se referem à fraude na bilhetagem automática do DFTrans, sob investigação na Operação Trickster, como um esquema que desviou dos cofres públicos “centenas de milhões de reais”. A aposta é de que o lucro de organizações criminosas que atuam para burlar o sistema de transporte público pode ter atingido a casa do bilhão. Nas contas do secretário de Mobilidade do DF, Fábio Damasceno, o crime ficou restrito a um prejuízo R$ 3,5 milhões detectado pelo controle do DFTrans.

Com a participação de 300 policiais civis, a Operação Trickster prendeu ontem 34 suspeitos de integrarem uma organização dividida em três grupos para driblar a fiscalização do sistema de bilhetagem automática, envolvendo principalmente cooperativas de ônibus da área rural. Mas pelo menos uma das empresas foi alvo de busca e apreensão, a Pioneira, da família Constantino. A fraude só ocorreu porque um dos envolvidos tinha uma senha do DFTrans com capacidade para inserir informações falsas essenciais para o sucesso da falcatrua. As prisões foram realizadas no DF, Entorno, João Pessoa (PB) e Recife (PE).

A suspeita é de que os criminosos usavam empresas fictícias, sem registro na Receita Federal, e com CNPJ falso, para a emissão de créditos para vale-transporte que seriam usados por seus empregados. Esses pedidos de crédito inseridos no sistema de bilhetagem geravam boletos de cobrança que nunca eram pagos, mas a fatura era registrada como quitada. A transação falsa e virtual criava créditos reais em cartões de transporte que, depois, eram descarregados nas máquinas validadoras dos permissionários. Toda essa operação ocorria para que o GDF liberasse dinheiro como ressarcimento pelos passageiros que nunca foram transportados. O auditor-fiscal de atividades urbanas Pedro Jorge Oliveira Brasil é apontado como o mentor do esquema (leia na página 20).

Intervenção

Sem especificar valores, a promotora de Justiça Lenna Daher, da área de Defesa do Patrimônio Público do DF, apontou que o sistema de bilhetagem automática do DF é uma “mina de ouro” para criminosos que querem ganhar dinheiro fácil. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) não descarta, inclusive, adotar medidas judiciais para intervir na gestão do sistema pela extrema vulnerabilidade das operações. “O Ministério Público do DF, além de se preocupar com a responsabilização criminal, com o aprofundamento dessas investigações, está estudando medidas urgentes de caráter cível e administrativo para interferir na gestão do sistema”, destacou.

Daher ressaltou que as irregularidades e brechas já haviam sido apontadas em relatórios da Controladoria do DF e que o GDF não adotou medidas para saná-las. A promotora ainda afirmou que os próximos passos serão aprofundar as investigações e tentar recuperar parte do dinheiro perdido. “Esses valores do orçamento que deveriam ser destinados para o custeio de serviços públicos de uma sociedade tão carente como o DF, estão abastecendo os cofres de organizações criminosas que descobriram uma mina de ouro”, analisou.

Esse entendimento é compartilhado por Fernando Cesar Costa, chefe da Coordenação de Combate ao Crime Organizado, contra a Administração Pública e contra a Ordem Tributária. De acordo com o delegado, desde sua criação, em 2007, o sistema tem sido cobiçado por ações criminosas pela fragilidade da segurança. Ele classificou a situação como “inadmissível” e adiantou que esta foi somente a primeira fase da operação.“Agora, com a medida cautelar autorizada pela 3ª Vara Criminal de Brasília, que é um espelhamento do sistema, nós vamos conseguir ter uma real dimensão do quanto foi fraudado, de que forma foi fraudado e quem eram todas as pessoas que operavam fraudulentamente nesse sistema”, pontuou.

Organização

Segundo as investigações, a quadrilha agia com divisão de tarefas. Parte dos suspeitos tinha a responsabilidade de inserir os dados sobre as empresas inexistentes no sistema com seus respectivos funcionários-fantasmas. Um outro grupo tinha a atribuição de validar os créditos, mesmo sem o recebimento do pagamento correspondente que deveria ser feito pelas empresas ao sistema do DFTrans. Outros integrantes passavam os cartões como se fossem usuários dos ônibus. Desse crédito gerado aos permissionários era originado o lucro que deveria ser repartido pela quadrilha. “Em um caso que a gente achou, por exemplo, em oito segundos, 60 usuários usaram o vale-transporte em uma linha, em um ônibus. É impossível 60 pessoas passarem em uma catraca em oito segundos”, disse o delegado Wisllei Salomão, chefe da Coordenação de Combate aos Crimes contra o Consumidor, a Propriedade Imaterial e à Fraude (Corf).

Entre os suspeitos de atuar na ponta do esquema está um assessor da deputada Celina Leão (PPS), Alexandre Lopes de Alencar, que também teve a prisão temporária decretada pela Justiça. Por conta disso, a distrital pediu ontem a exoneração do funcionário. “Fiquei muito surpresa com essa prisão. Nunca soube de nenhum envolvimento dele em qualquer cooperativa. Mas decidi afastá-lo até a conclusão das investigações”, disse a deputada que foi uma das mentoras da criação da CPI dos Transportes na Câmara Legislativa em 2015.

O governo sustenta que está tomando providências para evitar mais danos. Secretário de Mobilidade, Fábio Ney Damasceno disse que todas as senhas do sistema foram apagadas e que todos os contratos firmados com cooperativas serão revisados. De acordo com ele, as investigações começaram após a secretaria detectar as falhas e comunicá-las à Polícia Civil. “O governo vem, desde 2015, estabelecendo uma série de melhorias de gestão e gerenciamento do sistema que culminou, efetivamente, na operação de ontem. Que possibilitou ao DFTrans descobrir tudo o que vinha acontecendo no sistema de bilhetagem do DF”, alegou.

Em nota, a Viação Pioneira informou que trabalha pautada pela mais absoluta legalidade e transparência e que está à disposição das autoridades para prestar os esclarecimentos.

Frase

"O Ministério Públicodo DF, além de se preocupar com a responsabilização criminal, com o aprofundamento dessas investigações, está estudando medidas urgentes de caráter cível e administrativo para interferir na gestão do sistema”

Lenna Daher, promotora de Defesa do Patrimônio Público