Correio braziliense, n. 20018, 12/03/2018. Opinião, p. 11

 

A volta do dragão chinês

Jorge Fontoura

12/03/2018

 

 

Ao contrário do Ocidente, onde a figura do dragão está associada ao mal, o exótico animal mitológico é na cultura oriental o contrário. Com forma de serpente, bigodes e patas, significa poder e sabedoria, inclusive a representar a força dos imperadores da velha China. Nem a revolução cultural maoísta, feita a ferro e fogo, que pretendia abolir crendices populares e tradições folclóricas, conseguiu neutralizar a ideia-força de poder desmedido da mirabolante criatura. Afinal, até os imperadores são dragões e filhos de dragões.

Agora, em decisão contundente do Comitê Central do Partido Comunista chinês, aprovou-se, em votação simbólica, pois não poderia ser de outra forma, mudança constitucional que permite a permanência sem limites no poder. Ao afastar a limitação constitucional de dois mandatos presidenciais, buscou-se, de fato, a perpetuação no poder do atual presidente Xi Jinping, considerado emergente imperador, o novo filho do dragão, bem ao gosto da China profunda.

Xi Jinping, também secretário-geral do Partido Comunista, acumula assim poderes inéditos na recente história do gigante asiático. Como governante eficiente e político audaz, é fato inconteste que tem promovido o crescimento do país, uma vez que conta com todas as facilidades de rígido dirigismo totalitário, com planificação eficiente e com discutíveis controles legais. Um capitalismo de Estado desenfreado, o sonho de Wall Street, sem entraves legislativos ou limites de regulações ambientais ou trabalhistas. O sindicato é o partido.

Também atribui-se ao carismático líder, com importante presença internacional, absoluta credibilidade popular, a promover corajosas reformas, combatendo excessos das arcaicas burocracias, da corrupção ao clientelismo ancestral. Com isso, sua virtual eleição para novo mandato constitui apenas em unção branca de novo imperador, ad eternum, com poderes absolutos para governar em poucos anos a maior economia e maior potência global.

Sem adversários e voz única e incontestável do partido único, com suas leituras políticas e econômicas incorporadas e consagradas como doutrina oficial, Jinping lembra, fatalmente, o mito de Mao Tse-tung. Porém, em momento histórico diverso, com a China prestes a enfrentar outros desafios, como potência mundial consolidada, sem entraves da Guerra Fria e sem inimigos internos, e bem resolvida no dilema ideológico de assumir as delícias do consumismo.

De toda forma, a guinada determinada pelo núcleo duro da nomenclatura do Partido Comunista, já establishment à moda conformista das repúblicas burguesas tradicionais, com a adesão ao personalismo irresistível de seu secretário-geral, representa fato dos mais importantes, infelizmente, porém, como mais uma das tendências lamentáveis de época de tantos retrocessos. Das poucas certezas da filosofia política, resta patente que a limitação de poder pelo poder, sem cartas brancas fantasiadas de vontade soberana do povo, permanece ainda como inelutável marco civilizatório.

Na sabedoria política da democracia grega clássica, potenciais tiranos ganhavam dos atenienses o banimento da vida pública para prevenir a ânsia de poder que poderia afogar e destruir a polis. Em votações com cédulas feitas com pedaços de cerâmica chamados ostraka, a imitar as cascas das ostras, daí a etimologia do termo ostracismo, o candidato a ditador era convidado a afastar-se, fisicamente, de Atenas e da vida política, alijado das tentações de poder desmedido.

A República romana tomou caminho parecido. Depois de terminarem o mandato, os cônsules, frequentemente, eram enviados para governar províncias longínquas. Não foram poucos os poderosos que terminaram os dias de volta à vida simples, o que era visto, com inteligência social, como o auge da carreira política dos homens virtuosos. A decadência de Roma é, bem a propósito, fruto do fim da República e de suas instituições democráticas, com retorno de poderes centralizados de demagogos e populistas, com os triúnviros já a caminho dos imperadores dementes e da queda de Roma. (...)